domingo, 28 de setembro de 2008

McCain vs. Obama - Round 1.


Os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos protagonizaram ontem no estado do Mississípi o primeiro de três debates, através dos quais se propõem convencer o eleitorado de que são o melhor homem para liderar os destinos da superpotência nos próximos quatro anos. Considerados dos momentos mais cruciais da campanha presidencial, os debates a dois são televisionados por milhões não só na América, mas por todo o mundo. É um acontecimento político de alcance global, visto, revisto e analisado ao pormenor por especialistas e politólogos dos quatro cantos do globo.
No frente-a-frente de ontem, os dois candidatos assumiram posturas distintas. Cada um por si procurou distanciar-se do estilo do outro, fazendo por fazer salientar o melhor possível as suas idiossincrasias e os seus trejeitos pessoais. McCain optou nitidamente por apelar à razão e ao coração do americano comum, do homem simples do meio rural e do tecido urbano médio, dando especial ênfase à sua vasta experiência política e militar. Obama decidiu-se por uma comunicação mais eloquente, mais enérgica que McCain, fazendo por trazer ao de cima questões que são caras ao partido Democrata, como o sistema de saúde e a energia. Em termos de estratégia comunicativa, creio que McCain levou a melhor. Soube espicaçar Obama quando necessário, soube manter a regularidade no tom de voz e apostou numa postura sólida e quase imóvel frente às câmaras, numa clara intenção de transmitir uma imagem de dureza e de sabedoria. E nunca olhou directamente para Obama nem quando falava nem quando escutava, como que tentando diminuir ao máximo as mensagens do seu oponente. Ao contrário de Obama, que fez contrastar com McCain um discurso menos fluído, mais intermitente; ao mesmo tempo que cometeu, quanto a mim, o crasso erro de dizer com mais regularidade do que o desejável “you are (absolutely) right John, but…” no início de várias frases. Obama não precisava de admitir, mesmo que por um breve instante, que McCain estava certo. Poderia simplesmente refutá-lo, como fez aliás o seu adversário. Obama conseguiu, ainda assim, recuperar alguma da fluidez no discurso à medida que o debate avançava, melhorando em relação ao que mostrou na parte inicial.
No capítulo das ideias, o debate dos candidatos à Casa Branca girou em torno de três grandes temas: impostos, política externa e segurança interna – estas duas de resto bastante interligadas. Ambos os candidatos centraram-se mais em desdizer o outro do que em apresentar propostas concretas, havendo ainda assim lugar a algumas questões fracturantes no que toca a assuntos muito concretos e que requerem solução urgente, sendo o caso mais paradigmático o Iraque.
Começando pela economia, ambos realçaram a necessidade de controlar com mais rigor a despesa pública e ambos prometeram ser inflexíveis nesse aspecto – isto sob uma chuva de acusações mútuas sobre quem no passado mais projectos gastadores aprovou. Até aqui nada de mais. A grande diferença surgiu quando Obama acusa McCain de querer cortar nos impostos às maiores empresas, ao passo que anuncia a intenção de cortar nos impostos de 95% das famílias. McCain, por seu lado, prefere cortar nos impostos das empresas para que haja a possibilidade de atrair mais investimento e, logo, criar mais emprego. Defende a necessidade de investimento em defesa para bem da segurança interna.
No que à dependência energética diz respeito, e ao contrário de Obama, McCain é peremptório ao defender a construção de novas centrais nucleares. Obama discorda lembrando que o mercado não resolve tudo por si mesmo, requerendo amiúde intervenção estatal. Estabelecendo prioridades, faz seguidamente a apologia das energias renováveis, da educação e da necessidade de mais obras públicas – assuntos, diga-se, apenas por ele referenciados.
Em matéria de política externa, McCain procurou estrategicamente assinalar a inexperiência de Obama e desacreditar as ideias deste. Obama, nesta fase já mais confiante e recomposto das hesitações iniciais, tentou colar a imagem de McCain à de Bush, dizendo-o mais do mesmo. Iraque, Afeganistão, Irão e Rússia dominaram as atenções em termos de política externa, sendo que nos dois primeiros McCain e Obama têm pontos de vista diferentes. Enquanto que o republicano defende a manutenção das duas frentes de batalha, o democrata defende – por motivos orçamentais e estratégicos – a retirada gradual e concertada das tropas do Iraque em 16 meses, e o reforço do contingente militar no Afeganistão, país que considera a principal ameaça aos Estados Unidos, fruto da forte presença da Al-Qaeda. McCain refuta esta ideia, argumentando que o Iraque é o principal desafio a enfrentar e que uma vitória final é possível. Diz o republicano que sem presença no Iraque, a actividade terrorista no Afeganistão aumentaria para níveis incontroláveis, sendo que tal significaria nada menos que a derrocada do esforço de guerra americano dispendido até aí. Faz referência aos soldados e às suas experiências pessoais nesses territórios, algo que, segundo ele, Obama nunca fez.



Quando inquiridos sobre a maneira de lidar com as intenções nucleares do Irão, McCain passa ao ataque afirmando que Obama era capaz de se sentar à mesa com gente como Ahmadinejad sem pré-condições, e tais práticas são ingénuas e perigosas. Recorre para tal a um perceptível humor irónico. Obama não aceita a acusação e refere que é preciso falar com todos, se tal significar mais segurança para os Estados Unidos, insistindo na diferença entre pré-condições e cooperação.
No caso da Rússia, a posição dos candidatos foi mais aproximada, defendendo ambos uma abordagem dura para com acções agressivas deste país, e colocando-se ao lado de países como a Geórgia e a Ucrânia, abrindo-lhes caminho para a inclusão na NATO. McCain esteve especialmente bem ao dizer que via a Rússia como um governo de ex-KGB’s.
Nas alegações finais, Obama dá mostras de pretender restaurar a confiança, entretanto perdida, do resto do mundo na América e nos seus valores, e de apostar em abordagens multilaterais como formas privilegiadas de resolver os problemas. Já McCain é mais pessoal e intimista, dirigindo-se uma vez mais ao homem comum e aos seus anseios e necessidades, tentando soar mais protector e paternalista que Obama.
No rescaldo deste confronto, creio que McCain conseguiu ganhar algo mais que Obama. Mesmo num debate pobre e pouco aguerrido, McCain soube gerir melhor o seu discurso e penso que o tom usado tenha soado bem aos ouvidos de muitos americanos indecisos. Obama triunfa sempre que chama Bush ao barulho, e tem de potenciar mais as ideias que verdadeiramente o distinguem de McCain: a saúde, as energias renováveis e a política social. Os próximos debates, em Nashville e Nova Iorque, terão forçosamente de ser mais assertivos quanto a alguns aspectos ainda pouco esclarecedores no programa de ambos os candidatos.
Por agora, as atenções viram-se para o debate de «vices», entre Joe Biden e Sarah Palin, no próximo dia 2 de Outubro.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Uma Pequena Grande Parte de Mim.


Gosto de livros pronto. Pode parecer exagero tanto calhamaço que tenho mas a verdade é que não me incomoda nada ter tantos livros, muitos deles não lidos (e outros tantos que não faço para já a menor intenção de ler). Um livro é um amigo. E eu estou orgulhosamente rodeado deles. E se pudesse estaria rodeado por muitos mais. Uns em Portugal outros nos Estados Unidos, outros ainda na Rússia; uns em Guimarães outros em Braga, Porto ou Lisboa; uns pela net outros em pessoa; uns em livrarias a cheirar a novo e outros a tresandar a velhice; todos eles fazem parte da minha enternecida colecção. Agora das duas uma: ou o meu filho me vai achar um génio ou vou ser motivo de chacota para toda a turma dele. Mas enfim, há coisas que nos colocam um estúpido sorriso na cara e esta coisa de ter livros certamente é uma delas.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

«British Civility» Para Salvar o Mundo. Outra Vez.


Mais um capítulo da saga 007 anunciado. Tal como outras publicações do género, a Empire de Outubro antecipa-se e faz o retrato do “novo Bond”. Com estreia em solo luso marcada para 6 de Novembro próximo, Daniel Craig volta a encarnar o espião mais famoso do mundo em Quantum of Solace, tida já como a aventura mais sangrenta de sempre. E já agora a mais cara: 200 milhões de dólares batem todos os recordes em orçamentos atribuídos a um filme de James Bond.
Mas Bond bem o merece. Expectativas altas rodeiam pois o filme a cargo de Marc Forster, que já assinou, entre outros, Monster’s Ball e Finding Neverland. Não são exactamente filmes de acção explosiva, mas Forster parece ser o tipo realizador capaz de dar o necessário toque de classe a um filme de 007. Forster, que inicialmente declinara o convite, acabou por aceitar após conhecer Craig e após ter tomado em consideração o conselho intemporal de Orson Wells, segundo o qual o seu maior arrependimento foi nunca ter realizado um filme comercial. Forster substitui então Martin Campbell, um dos grandes responsáveis pela profunda transformação de James Bond como personagem fílmica. A Bond foi-lhe retirando o aspecto artificialmente requintado dos últimos filmes, ao passo que foi conferida à personagem uma aura declaradamente austera, mais dura e cruel, e claro de maior realismo e aproximação à ideia de Fleming. Quantum of Solace terá de confirmar Daniel Craig no papel de Bond, e dissipar de vez toda e qualquer interrogação que ainda recaia sobre a pertença da personagem a este actor britânico (pois claro). Quantum of Solace será uma continuação da história de Casino Royale, contando para tal com a mesma equipa de argumentistas, dentre os quais se destaca o nome de Paul Haggis. Garantia pois de uma fidelização ao conceito que até agora deu resultado, tendo em conta as altas taxas de aprovação – totalmente justificadas – ao trabalho de Craig.
Na sua nova aventura, Bond procurará vingança pela morte de Vesper Lynd, e irá tomar contacto com uma organização criminosa bem mais complexa e tentacular do que o previsto. Bond tentará destruir os planos de Dominc Greene, um dos vilões da história. Greene planeia colocar o exilado general Medrano no poder de um país da América Latina para obter um pedaço de terra por forma a desenvolver as suas actividades ilícitas. Greene é um poderoso inimigo de Bond, possuindo contactos na CIA e no próprio governo britânico. Olga Kurylenko fará o papel de Camile, uma mulher que transborda sensualidade, e que um mal-entendido colocará no caminho de Bond. Mais um motivo para esperar o melhor de Quantum of Solace. Um desafio bem à maneira de Bond, num filme que promete.
James Bond, a salvar o mundo desde 1962.

domingo, 21 de setembro de 2008

Respeito e Reconhecimento. Só.


A posição russa sobre o conflito no Cáucaso parece, á primeira vista, bastante plausível. Num dos últimos números da Newsweek (acima disponibilizado), as acusações feitas a Mikheil Saakashvili por Sergey Lavrov de ofensas á população civil e á segurança das tropas de manutenção de paz russas lá estacionadas desde os acordos de 1992, são para ter em conta. Se verdadeiras – e em parte crê-se que sejam – as acusações do actual chefe da diplomacia russa constituem um claro ponto a favor do Kremlin, que por estes dias tem sido alvo da desconfiança e até de alguma hostilidade por parte da Europa e dos Estados Unidos.
Em contextos de conflito armado não há inocentes, mas pode haver uns menos inocentes do que outros. Desde há algum tempo que os sinais para uma guerra no Cáucaso se tinham vindo a avolumar. Desde expulsões de embaixadores até incursões provocativas em espaço aéreo do outro, passando por trocas de palavras nada condicentes com a postura diplomática que um chefe de Estado deve assumir, até embargos comerciais – um pouco de tudo aconteceu nas frágeis relações entre a Geórgia e o seu poderoso vizinho setentrional. Incentivado por Washington, que via em Saakashvili um actor político da maior relevância para a sua influência na região e o seu país como Estado-tampão ao poder russo, a Geórgia deu um passo em falso, e não mediu a proporção da resposta russa. Moscovo, por sua vez, não enjeitou uma oportunidade de ouro para fazer valer a sua renovada estratégia na cena internacional. O que não invalida que a Rússia tenha aproveitado a ocasião para reduzir a capacidade militar da Geórgia ao mínimo, amputando-a da possibilidade de projectar livremente o poder dentro das suas próprias fronteiras.
Para tal, a intervenção russa não pode nunca ter sido proporcional á ameaça georgiana (tal como defende Lavrov), sendo que no decurso da guerra excedeu largamente o estritamente necessário. Em política, ou em diplomacia, tal facto pouco conta na prática. Era assim dantes, é assim hoje. A justificação russa, consistentemente formulada, não oferece grande espaço de contra-argumentação à Europa ocidental, e muito menos aos Estados Unidos, sempre prontos a defender “o seu povo” por todos os meios necessários. A oratória russa respeitante à guerra na Geórgia praticamente não difere da utilizada pelos Estados Unidos nestas ocasiões. Demarcando-se da União Soviética, a Rússia amadureceu diplomaticamente. Parece saber lidar com o mundo ocidental, conseguindo tocar nas suas fragilidades, imitando os seus métodos em matéria de política externa, suscitando assim focos de aprovação em vários pontos do globo. Já não serve de muito comunicar com o Kremlin usando argumentação de pendor moralizante; o diálogo deve ser levado a cabo em plano de igualdade. Só dessa forma é possível garantir o respeito da Rússia, garantir desta mais cedências, bem como uma política menos ofensiva. Respeito internacional e reconhecimento como actor activo no plano externo é, garantidamente, tudo o que a Rússia pretende. Veremos que tipo de resposta dará o Ocidente a estas pretensões.

Wong Aprovado À Tangente.


Atendendo à natureza do cinema de Wong-Kar-wai, não é de estranhar o carácter eminentemente experimental de My Blueberry Nights. O cineasta oriental, amplamente reconhecido pelo enorme contributo prestado ao cinema de Hong Kong, lança-se na aventura de filmar o seu primeiro trabalho em língua inglesa. Não sendo um passo em falso (não o foi), também não foi um passo totalmente acertado. É como se o realizador chinês cedesse parte da essência do seu cinema, fragmentando à partida o filme e transformando-o num objecto saboroso mas com pouca profundidade.
Os elementos básicos da sua arte – personagens psicologicamente em mutação, confusas perante a vida (perante o amor sobretudo) e perante o que as rodeia; histórias com desenvolvimentos inexplicados; e, mais notoriamente, fortes efeitos visuais – estão lá todos. Mas parecem pouco relacionados, pouco concertados, como se não houvesse uma perfeita sintonia com o contexto geográfico, ou com o elenco propriamente dito. Basta dizer que My Blueberry Nights se apoia muito na beleza pouco comum da sua banda sonora, inquestionavelmente um dos grandes pilares que suportam a obra, fazendo até esquecer algumas das fragilidades da película. É um conjunto musical sólido e, mais importante que tudo, aplicado nos momentos certos, gerando uma grande cumplicidade entre a melodia e a cena em questão. A banda sonora é o tempero do filme; é aquilo que lhe confere um gosto especial, capaz de gerar no espectador um certo deleite em várias das suas passagens. Norah Jones não foi de encontro às expectativas em torno da sua estreia no grande ecrã, mostrando uma postura distanciada dos pergaminhos em que supostamente o filme assenta. É uma interpretação sem sal, num filme dominado pela doçura. O mesmo não se pode dizer – pelo menos não tão linearmente – das restantes personagens: David Strathairn, Rachel Weisz e Jude Law são traves mestras, algo acima de Natalie Portman, que em certa medida apanha por tabela da falência de Jones.
Wong Kar-wai parece outro realizador a imitar Wong Kar-wai. Não obstante alguns momentos visualmente belos e deleitosos, surpreendentes até, o filme não é um todo uno, e não se compreende a curvatura da sua história. O que não convém, pois após uma fatia de tarte de mirtilo, muitas curvas podem enjoar.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ainda Marx.

Nem de propósito. Sem notar que o suplemento “Actual” do Expresso desta semana tinha Marx como tema de capa, postei no passado Domingo sobre a teoria geral do marxismo patente no Manifesto Comunista, sem todavia me aperceber que a obra faz este ano nada menos que 160 anos. As directrizes que conferiram a força motriz ao projecto comunista global encontram-se explanadas neste curto manifesto político, um texto que a todos os níveis se mostrou influente no modo como os partidos e organizações comunistas alicerçaram as suas acções durante a segunda metade do séc. XIX e no séc. XX. O rotundo falhanço da prática comunista - em abono da verdade da marxista-leninista - não esmoreceu a discussão sobre a validez do pensamento de Marx e Engels na era das democracias liberais e da globalização. Interessará pois menos tentar encontrar culpados para o desabamento do ideário marxista sobre si mesmo, do que tentar enquadrar Marx no espaço político-económico da realidade contemporânea. Aquilo que mais me chamou a atenção neste artigo da “Actual” foi precisamente o sublinhar da importância da “ideia crítica” do marxismo por parte do filósofo argelino Jacques Derrida, uma das suas dimensões actualmente mais valiosas:
Derrida designava assim uma actualidade de Marx, para além dos apelos ideológicos e ao «retorno de Marx»: invocando a «revolta», mas sem necessidade de uma organização do proletariado, ou de uma classe, nem muito menos de um partido; apelando à força crítica e analítica de Marx tanto no plano da acção política como na interrogação dos fantasmas, das mercadorias, da tecnologia, do trabalho imaterial, da globalização em curso e do aparelho mediático. E nomeava «dez pragas» da nova ordem mundial para propor uma «nova internacional» capaz de renovar e radicalizar a crítica ao estado do direito internacional. Uma aliança sem instituição, proposta por alguém que nunca acreditou no papel messiânico da união dos proletários de todos os países, nem na ditadura do proletariado – eis o que Derrida apresenta como resposta aos desafios da herança de Marx e como de fidelidade de um dos seus «espíritos». Ao mesmo tempo, Derrida denunciava a atitude que consiste em jogar Marx contra o marxismo e neutralizá-lo politicamente.
«Marx-renaissance» é simplesmente isto: não negar a abordagem crítica de Marx, mesmo – talvez sobretudo – no mundo actual, cravejado por processos capitalistas megalómanos, muitas sob uma capa falsa de justiça social. Sem ser marxista, e negando o seu insucesso empírico, é preciso contudo aproveitar a sua dimensão provocatória, a sua forma de questionar as relações sociais, e em especial (porque não dizê-lo), as relações entre capital e assalariado. Aproveitar a dimensão humana do marxismo, para amenizar algumas das consequências nefastas motivadas pela troca incomensurável de capitais, é uma necessidade dos nossos dias.
Pós-modernismo = pós-marxismo?

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Críticos, Não Quero Saber. Aguardo Firmemente "Righteous Kill" e Pronto.


Quando às salas de cinema chega um filme que junta De Niro e Al Pacino, só existe uma opção: ir ver e ponto final. Se mesmo um filme só com um destes senhores é já motivo para uma deslocação ao cinema, com os dois na mesma película o «dever ser» torna-se em «obrigação». Querendo evitar a fanfarronice, a verdade é que justificar isto é a mesma coisa que tentar justificar porque é que o céu é azul ou porque é que o coelho pode ser comido de cada vez que saia da toca. Porque é assim, porque é natural e porque não vamos ser nós a negar a natureza. E dita a natureza de um amante de cinema que minimamente se preze que não pode falhar ao novo compromisso De Niro/Pacino, depois do Padrinho II e de Heat. Evitar Righteous Kill, mesmo após ter lido tanta crítica menos abonatória, é menosprezar a mística cinematográfica e desrespeitar a essência do génio desta dupla de gurus. É inútil dizer porquê. Vamos ver, muito caladinhos, e pronto, logo se vê o que dali sai. Se for bom, ficarei muitíssimo satisfeito; se não for, ficarei um pouco menos satisfeito do que queria, mas satisfeito na mesma por ver aqueles dois em acção ao mesmo tempo.




domingo, 14 de setembro de 2008

A Declaração de Intenções do Manifesto Comunista.


O Manifesto do Partido Comunista, cuja primeira edição data de 1848, é das obras mais emblemáticas de Marx e de Engels, e é considerado dos mais importantes e influentes trabalhos de teoria política jamais concebidos. É aqui que Marx procura discorrer sobre a verdadeira essência do comunismo, procurando esclarecê-lo em todas as suas dimensões e objectivos; de modo a que a sua doutrina – como os próprios autores fizeram questão de frisar – não continuasse exposta às maledicências e deturpações de que era alvo por parte da classe burguesa. Com este Manifesto, o comunismo assumiria inquestionavelmente, “perante o mundo inteiro, as suas concepções, os seus fins, as suas tendências.” O Manifesto, posto isto, é uma obra relativamente bastante curta, mas com elevado índice de objectividade acerca das principais teses comunistas, que giram essencialmente à volta de conceitos como os de luta de classes, exploração, burguesia, proletariado, capitalismo e revolução.
A obra demonstra desde logo o materialismo – ideia premente em Marx – e, portanto, uma ruptura com Hegel e Feuerbach. Para Marx, a primazia em filosofia não é da ideia, mas sim da realidade. A filosofia tem por isso de deixar de ser meramente especulativa, para passar a ser um instrumento para a transformação do mundo. Assim sendo, a filosofia deve acima de tudo preocupar-se com a interpretação do homem e das suas necessidades, bem como debruçar-se sobre realidades materiais. É por isto que Marx considera que são as condições materiais de existência que impõem à história um carácter eminentemente revolucionário. O homem é o principal sujeito da história, e a mesma foi, até ao surgimento do comunismo, composta por várias fases: pré-histórica, esclavagista, feudal e burguesa. A história tem sido uma continuação sistemática de relações dominador/dominado, mas sob condições e circunstâncias diferentes. O modo como a sociedade está estruturada, não permite às classes baixas almejarem qualquer modificação á sua condição de exploradas: o que dantes estava dividido entre patrícios e plebeus, ou entre barões e servos está hoje – na visão de Marx – dividido entre burguesia e proletariado. Foi, portanto, a organização do trabalho e os beneficiários desse mesmo trabalho, o critério escolhido por Marx para a sua famosa divisão da história. A luta de classes resume-se á luta pelo poder entre a classe dominante e a classe dominada: a classe dominante procura manter a posse dos meios de produção e o consequente usufruto do lucro proporcionado pelo labor da classe dominada, enquanto esta última luta pelo derrube total da primeira e pela implantação de um novo tipo de sociedade.
Marx usou a dialéctica para explicar a forma como as sociedades se sucedem no decurso da história. Simplificadamente, a dialéctica é a ciência da contradição e da antítese, defendendo que tudo gira à volta do seu oposto e da luta interminável e constante entre opostos. Quando as forças produtivas de uma sociedade ganham consciência de que a classe dominante já não é necessária, e/ou constitui um entrave ao progresso social, dão início ao processo revolucionário que a arredará do poder. Ou seja, uma sociedade era deposta após a classe oprimida ter explorado as suas contradições (Aufhebung). A isto, Marx juntou as concepções materialistas para descrever a sociedade como uma luta constante entre a sua base material e a sua base política e ideológica, entenda-se, entre a infra-estrutura e a super-estrutura.
Em relação ao surgimento do estado actual de sociedade, isto é, o capitalismo, Marx adianta que este surgiu “sob as ruínas da sociedade feudal”. Isto significa que o desenvolvimento das forças produtivas da burguesia foi suficiente para depor a aristocracia vigente no geral, e os senhores feudais em particular. O choque entre a super-estrutura e a infra-estrutura deu origem a uma alteração nas relações de produção: a classe burguesa passou a ser dona dos modos de produção. A constituição da burguesia em super-estrutura levou à formação de uma outra estrutura societal, onde se assiste à emergência da classe do proletariado – uma classe social que nada mais tem para vender do que a sua própria força de trabalho, a qual é vendida a um preço ridículo quando comparado com as mais-valias que a classe proprietária arrecada com o comércio daquilo que é produzido pelo proletariado.
Marx refere-se à burguesia como tendo “simplificado os antagonismos de classe”, sendo esse o factor que distingue a fase capitalista da história das restantes. Reconhecendo o seu empreendedorismo, Marx atribui á burguesia várias responsabilidades na alteração da estrutura social. Entre outras coisas, a burguesia foi responsável por aglomerar a população em grandes áreas, por centralizar os modos de produção e, mais importante, por concentrar o poder em poucas mãos; ao contrário do que existia anteriormente. É possível concluir, portanto, que os antagonismos na era capitalista são, para Marx e Engels, fáceis de identificar: a superação do capitalismo pelo comunismo será viável pela união dos proletários de todo o mundo contra a super-estrutura centralizada e dominada pela burguesia ávida de lucro. No imaginário marxista, a revolução comunista significaria o fim da luta de classes pela superação do próprio conceito de classe, bem como o fim da história. A formação de uma sociedade caracterizada pela distribuição igualitária dos bens e pelo livre desenvolvimento pessoal de cada um, e desprovida de qualquer hipocrisia capitalista, tornar-se-ia uma realidade.

Porque é que o ideário não se concretizou é outra história.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Persona Non Grata.

As recentes notícias provindas da América do Sul são nada menos que gravíssimas. Num espaço de tempo muito curto, os Estados Unidos viram dois dos seus embaixadores no continente sul-americano serem declarados persona non grata. A declaração de persona non grata é uma figura jurídica prevista no direito diplomático, que pode ser accionada quando o Estado receptor deixa de apreciar a conduta do chefe de missão ou de outro diplomata pertencente a essa mesma missão. Quando isto acontece, o diplomata em causa deve abandonar o território do país onde se encontra acreditado, num prazo emitido pelas autoridades desse mesmo país.
Em teoria, o Estado receptor não precisa de justificar nem de provar as razões pelas quais decidiu fazer tal declaração, mas é comummente sabido que rapidamente as verdadeiras razões são tornadas do domínio público. Manda pois a boa regra diplomática que essa justificação seja dada ao Estado de envio num prazo considerado razoável e justo. Posto isto, mais grave ainda se torna a situação se o Estado receptor não informar o Estado de envio dessa decisão pelos canais diplomáticos oficiais, que é precisamente aquilo de que se queixa Washington. Ora daqui se pode concluir que as manobras políticas de La Paz e de Caracas vão no sentido de provocar uma ruptura estrutural nas relações bilaterais com os Estados Unidos. Que se saiba, o embaixador dos Estados Unidos em Caracas nada fez que justificasse a decisão do governo venezuelano. E não há informação disponível sobre a conduta do embaixador norte-americano em La Paz. A Bolívia acusa o diplomata de instigar à revolta da oposição nas províncias do leste do país, actuando em estreita articulação com as instâncias governamentais do seu país. Se e só se isto for verdade, La Paz terá razão. O embaixador estaria ostensivamente a violar o princípio sagrado de não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, e veria a sua expulsão automaticamente justificada.
Acontece que até prova em contrário – e isto aplica-se especialmente à Venezuela que agiu unicamente por “solidariedade” – uma declaração de persona non grata sem justificação à altura do acto, é o mesmo que rejeitar toda a cooperação e relações diplomáticas com o Estado em causa. Isto porque existem outras vias diplomáticas mais suaves para fazer substituir o chefe de missão por outro, sem a necessidade de o declarar persona non grata. Por sua vez, os Estados Unidos seguiram a via normal nestes casos, senso comum, que foi dar ordem de expulsão aos embaixadores boliviano e venezuelano lá acreditados.
Contudo, há que acrescentar que mesmo que a declaração de persona non grata por si só não signifique o fim de relações diplomáticas entre os Estados em causa, nem a extinção das respectivas missões; significa no mínimo um retrocesso profundo no clima de paz e de cooperação desejável entre dois Estados, acarretando consequências imprevisíveis para a estabilidade do sistema internacional. Actos destes fazem perigar a paz no continente sul-americano, em claro prejuízo da vontade dos povos. Salvo se plenamente justificada por ambos, a declaração de persona non grata, até lá, pode ser vista como uma irresponsabilidade; e pior que tudo, como um estratagema pré-organizado para criar deliberadamente uma tensão diplomática que só o tempo provará se é – ou foi – necessária.

Napaloni: "Oh, so you get a big army?" Hynkel: "(chuckling) Modesty forbids."

Reproduzo, a propósito da postagem anterior, um diálogo marcante e a todos os níveis caricato entre Hynkel e Napaloni. Todo o diálogo é uma sucessão de auto-elogios, com os quais ambos os ditadores pretendem sobrepor-se ao seu interlocutor. O diálogo é a prova maior do transbordante ego das personagens interpretadas por Chaplin e Jack Oakie. O diálogo vem descrito no último número da britânica Empire. Aconselha-se vivamente a leitura destas linhas, que funcionam tão bem no papel como na tela.


A Maior Comédia de Todos os Tempos.

Cinema elevado à categoria de obra-prima. Puro deleite proporcionado por uma das maiores sátiras que a sétima arte já registou. Atrevo-me a dizer que é a maior comédia de todos os tempos. Chaplin na pele de Adenoid Hynkel, ditador da Tomania, é a alma do filme, ao qual lhe incute um trejeito muito seu, a ponto de chegarmos a um estado de letargia mental não intencional entre Hynkel e Hitler. Esta é a extraordinária visão que Chaplin teve do funesto ditador germânico, uma missão difícil em 1940, altura em que os EUA se encontravam ainda remetidos ao isolacionismo. Consistindo basicamente numa deturpação cómica do fascismo europeu que grassava naquela altura em solo europeu, O Grande Ditador conseguiu o seu merecido lugar na história do cinema pelos grandes momentos que com regularidade assinalável é presenteado o espectador.
É um sem fim de cenas memoráveis, as quais patenteiam bem o fino trato de Chaplin, a sua modesta e ímpar forma de actuar, conservando uma imprescindível mensagem moralista por detrás. A figura do barbeiro judeu é o mote para uma história pródiga em temas intemporais, desde logo a negação da subjugação do homem pelo homem, mostrada na parecença física do barbeiro judeu com Hykel. Em suma, o filme transborda de simbolismos, começando nas personagens – já que quase todas elas parodiam personalidades reais da época, nomeadamente ligadas aos regimes alemão e italiano – e terminando na genialidade absurda que rege, antes de tudo, os actos de Hykel e de Napaloni, este último uma dantesca ridicularização de Benito Mussolini. Contudo, é nas aspirações demoníacas de Hynkel que Chaplin joga o seu verdadeiro trunfo. O realizador/actor/produtor do filme consegue rebaixar Hynkel – entenda-se Hitler – a tal ponto de o tornar num homenzinho insignificante, numa aberração sem sentido do que é ser-se humano, num simples sonho mau que depressa acabará. É uma inequívoca chamada de atenção para a fortaleza aparente de regimes encabeçados por loucos: fortes por fora, fracos por dentro. Não há ali nada de aproveitável, seja em Hykel ou em Napaloni: ambos são personagens que têm tanto de cómico como de vazio. Não há ali substância, apenas um ego ilimitado que a todos cega e acorrenta. O discurso final de Hynkel, já na pele do barbeiro judeu, funciona pois como um último fulgor, desta vez sério, para incentivar as massas a não se iludir com falsas promessas de liberdade e prosperidade, muito menos quando pelo meio estão ideias como a superioridade da raça e a agressividade face ao povo vizinho.
O Grande Ditador foi e continua a ser uma perigosíssima arma de arremesso contra regimes totalitários. Só a visão e o pioneirismo de Chaplin, conseguiu levar o cinema satírico tão longe, de modo a mostrar a nu as fragilidades do ser humano, retratado numa obediência risível para com tipos egocêntricos disfarçados de estadistas. Deixo aqui uma das cenas mais belas do cinema clássico, a badalada cena em que Hynkel brinca com o mundo, numa patética demonstração do seu carácter louco e belicista.





P.S.: Foi através de Portugal que Hitler recebeu a única cópia que teve de O Grande Ditador. Consta que o ditador visionou o filme por duas vezes. Mais tarde Chaplin declarou que "daria qualquer coisa" para saber a reacção e a opinião de Hitler sobre ele.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Futebol com Cheiro a Petróleo.


O liberalismo económico estende-se irremediavelmente ao desporto. Há pouco mais de uma semana, o Machester City foi adquirido por um grupo de investimentos árabe. Recorde-se que, em 2007, o mesmo clube havia já sido alvo de compra por parte do antigo e muito controverso primeiro-ministro tailandês, Thaksin Shinawatra. Na altura, surgiram bastantes rumores acerca da verdadeira razão pela qual Shinawatra pretendia adquirir um clube da Primeira Liga Inglesa. Houve quem revelasse que a única razão da compra se devia ao facto de Shinawatra pretender, através de um golpe mediático, desviar as atenções dos processos legais que sob ele recaem no seu país. Seja como for, parece que o “City” está destinado a mudar de mãos com uma regularidade não muito desejável.
Por outras razões que não as de Shinawatra, o Abu Dhabi United Group, assim se faz denominar o grupo pertencente à Abu Dhabi Investment Authority – organização financeira sedeada nos Emirados Árabes Unidos – anuncia a compra da parte do clube (75%) pertencente a Shinawatra, entretanto alvo de um pedido de extradição do governo tailandês. A Abu Dhabi Investment Authority é responsável pela gestão e aplicação dos actuais fundos de riqueza soberana do seu estado. Muitos estados cuja riqueza provinda da exportação de determinado bem tenha subido a níveis para lá do satisfatório, têm optado utilizar essa riqueza para cimentarem a sua presença estratégica no mercado económico internacional, nomeadamente através da participação ou aquisição total de empresas estrangeiras. Esta prática tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos, tendo suscitado alguma atenção por parte de países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, zelosos quanto ao futuro de algumas das suas empresas mais importantes. No caso do grupo de investimentos que comprou o clube inglês, estamos «somente» perante o maior de todos os que até agora são conhecidos. E a partir do momento em que Shinawatra se mostrou disponível para vender a sua posição maioritária no clube, tudo ficou mais fácil para o grupo de Abu Dhabi dar seguimento a um negócio que se lhe revelou por demais conveniente. Sem precisar de procurar muito, o Manchester City caiu-lhes do céu.
As consequências imediatas para o histórico clube de Manchester são por demais evidentes. Sulaiman Al Fahim, o principal rosto do grupo, foi já peremptório ao anunciar que o “City” será dentro de muito em breve um dos maiores clubes do mundo, senão mesmo o maior. Os novos objectivos do "City" estão a partir de agora em perfeita sintonia com os objectivos do próprio grupo de investimento, ávido por consolidar a sua posição estratégica em vários mercados distintos, designadamente no mercado desportivo. Investir em desporto, e logo no desporto-rei, é colocar-se em frente aos olhos de milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo. É fazer com que uma colectividade desportiva geradora de grandes emoções fique aos dispor das veleidades de um grupo de oligarcas árabes, que apesar da inegável habilidade com que gerem os seus negócios, estão desprovidos da sensibilidade que julgo essencial para lidar com a paixão sentida pelas muitas dezenas de aficionados do “City”, unanimemente reconhecidos como os adeptos mais leais de Inglaterra. É claro que o eventual sucesso do clube fará as delícias tanto dos adeptos como dos seus novos donos. A grande questão aqui é que o fará por motivos muito diferentes: aos adeptos interessarão as eventuais conquistas desportivas e o prestígio do clube, ao passo que ao Sr. Sulaiman interessará, para além dos lucros, a renovada influência que Abu Dhabi passa a exercer junto da sociedade civil de uma das cidades mais importantes do Reino Unido, cimentando assim a sua influência na própria sociedade inglesa e, em última instância, nos meandros da alta finança do país.
O mundo futebolístico está portanto perante um novo «monstro» endinheirado, que promete abalar o já de si movimento mercado de transferências no próximo defeso. Endinheirado é pecar por defeito, pois o Manchester City estará nesta altura entre os clubes do mundo com mais capital disponível de facto para comprar jogadores. Al Fahim já avisou que vai tentar contratar os melhores do mundo da modalidade, e eu acredito que o fará. Provas disso têm sido as tentativas de aquisição de Van Nistelrooy ao Real Madrid ou a abordagem por Kaká ao AC Milan, além de muitos outros nomes concretos já revelados por Sulaiman, entre os quais figura o de Cristiano Ronaldo, pelo qual parece disposto a desembolsar uma quantia que a todos deixou boquiabertos. Terá o “City” sucesso num futuro próximo? Ainda é cedo para dizer. Só a reabertura do mercado em Janeiro próximo trará novos dados sobre as reais capacidades negociais do “City”. Mas convém não esquecer o exemplo de Robinho, prontamente contratado ao Real Madrid por bem mais do que o valor inicialmente oferecido pelo também milionário Chelsea. E por falar em Chelsea, torna-se inevitável – dadas as circunstâncias – um termo de comparação entre ambos os clubes. Se o Chelsea, após ser sido adquirido mais ou menos nas mesmas condições em que o foi o “City”, teve o sucesso que teve, porque não conseguirá também o clube de Manchester, ainda por cima com uma muito maior implantação na cidade do que o eterno rival United, almejar sucesso semelhante? Pode e deve, pois tem dimensão para isso. Seja como for, atenção: está aí o clube que a breve trecho muita tinta fará correr. Esperemos, Sr. Sulaiman, que pelos melhores motivos.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Uma Banda à Moda Antiga ou Como o Rock Devia Ser.

Uma das bandas de rock alternativo mais interessantes dos últimos anos dá-se pelo nome de The Raconteurs. O projecto musical iniciado por Jack White e por Brendan Benson em 2005, dois músicos de créditos sobejamente firmados, rapidamente granjeou a devoção de uma legião de fãs, um pouco por todo o mundo. Tal não se deve unicamente à identidade dos membros mais proeminentes da banda, uma vez que as canções rock polvilhadas de folk e blues dos The Raconteurs vieram de encontro às grandes expectativas neles depositadas, aquando do surgimento dos primeiros rumores de uma colaboração White/Benson. Broken Boy Soldiers, o primeiro registo de originais, é um álbum que recorda sonoridades passadas, numa articulação bem conseguida entre as instrumentalizações típicas de vários géneros. Todo o álbum parece soar realmente às circunstâncias em que foi produzido: umas "férias" tiradas por White e por Benson, nas quais intencionam deliberadamente escapar às limitações impostas pelos seus projectos principais.
O segundo álbum, Consolers of the Lonely, já do presente ano, caiu muitíssimo bem entre a crítica e os fãs. Além de não ser esperado tão cedo, o álbum não teve direito a promoção, uma situação que veio a aumentar o frenesim em torno da sua saída, anunciada apenas uma semana antes. Consolers of the Lonely veio desfazer todas as dúvidas acerca das reais capacidades da banda em dar continuidade à qualidade do primeiro álbum. Prova superada com distinção, pois o rock caótico e atabalhoado de Consolers foi recebido como sendo um genial golpe criativo de Jack e seus pares. O seu som quase indescritível, a juntar aos inesperados riffs pelo meio de labirínticos resquícios de piano e sopros foi alvo de uma recepção apoteótica. 2008, portanto, consolidou os The Raconteurs como uma banda apaixonante e ímpar na cena musical contemporânea; e como uma das poucas que sabe como acenar qualitativamente às genuínas raízes do rock.
Para ouvir aqui fica Together, do primeiro álbum, a faceta mais calma do quarteto de Nashville.


Ser do Mundo.


Esta pode muito bem ser a viagem de uma vida. Para qualquer um que sonhe poder viajar livre e despreocupadamente à volta do mundo, o desafio é cruzar sob linhas férreas vários milhares de quilómetros, desfeiteando planícies, vales, cordilheiras e montanhas, penetrando fervorosamente no interior desértico das estepes asiáticas. Uma imensidão que a mente não alcança atravessa a rota iniciada na capital russa, culminando no outro lado da Manchúria, em Pequim – uma opção qualitativamente superior a Vladivostok. A viajem, desaconselhável aos menos tenazes, é não só uma verdadeira epopeia geográfica, mas sobretudo uma epopeia de inspecção e de introspecção. Tal empreendimento possibilita o contacto de perto com gentes que não são do nosso mundo. É estar no meio do lado temerário da Terra, aquele lado que desconhecemos e que portanto receamos.
Não conta para aqui a leitura de floreadas crónicas de viagem nem de volumes de enciclopédias: pôr o pé para lá dos Urais é uma aventura única e fascinante, que sacia temporariamente a sede de adrenalina de uma mente aberta ao conhecimento e às coisas novas. E, se viajar é aprender, percorrer 9000km sob carris e suportar uma dezena de fusos horários diferentes é uma verdadeira lavagem de espírito. É fazer reset em muitas convicções que tínhamos como certas e inabaláveis. É crível que observar tamanha pluralidade de tradições, gentes, paisagens e modos de vida em tão pouco tempo possa conduzir a uma mutação profunda no interior de todo aquele que aceita a relatividade da nossa cultura, da nossa arte, das nossas convenções.
O Transmongoliano – uma extensão do famoso Transiberiano – é indubitavelmente a melhor forma de assistir à sucedânea gradual da heterogeneidade cultural, paisagística e biológica do continente eurasiático. Trata-se naturalmente de uma jornada impagável, um gesto de auto gratificação sob a forma de um comboio, que molda forçosamente a perspectiva que até detínhamos da realidade, tão para lá do nosso insignificante quotidiano quanto os quilómetros calcorreados por esta histórica rota. Assistir em lugar de tribuna aos mais simples e pitorescos gestos de alguém; algum habitante longínquo de mundos paralelos ao nosso, gente apenas pensada, nunca reflectida. Esta é a oportunidade única de procurar sentirmo-nos pertença deste planeta chamado Terra, doce lar de tantas terras mutuamente desconhecidas. Tentar reduzir o fosso da irascível ignorância intercultural, para bem nós mesmos e dos outros, porquanto tudo é válido e digno de nota. Para viver sabendo-nos mais homens do mundo, a fim de evitar que o tempo passado neste apeadeiro que é a vida, não tenha tantos obstáculos nem seja tão cruel e triste.

sábado, 6 de setembro de 2008

Jakob (Esqueçam-lhe o Apelido) Dylan.

Tenho acompanhado relativamente de perto a carreira deste rapaz. Para quem não conhece, Jakob é filho de Bob, o admirável e multifacetado Dylan, dono e senhor de uma discografia que dispensa apresentações e superlativos rebuscados. Jakob não tem o talento do pai. Mas também não precisa. A sua música é suficientemente consistente para sacudir o pesado apelido que carrega. Jakob não precisa do Dylan para se afirmar como um músico e letrista de mérito reconhecido, muito por força da sua voz omnipresente e do ritmo peculiar e tendencialmente melódico que imprime às suas composições. Com o seu primeiro álbum a solo nos escaparates após dezasseis (!) anos como líder dos The Wallflowers, Jakob dá assim início a um novo rumo na sua carreira. Um passo acertado, pois permite revelar o verdadeiro eu por detrás de uma figura musical que permanece um mistério para muitos. Acredito que a auto-revelação a cru de Jakob em Seeing Things o catapultará para voos maiores, já que qualidade é coisa que não lhe falta. Por todos os motivos e mais algum, aqui fica Evil is Alive and Well, uma entrada muito bem servida para os pratos que se lhe seguem.


Para Mascar.

E a vida parece mais simples.





P.S.: Altamente recomendada em autoestrada.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

E Para Não Variar, Aposta Ganha.


E mais uma vez a Pixar ganhou em todas as frentes. Cepticismo vencido e fanatismos conservadores postos de parte, a nova aposta do estúdio californiano para o ano de 2008, WALL·E, revelou-se um filme de animação que prima sobretudo pela surpresa que causa no espectador mais desprevenido. A película ganha uma dimensão quase bíblica ao focar em contexto animado temas sérios e profundos, que estimulam a reflexão sobre o próprio papel desempenhado pela humanidade numa época recheada de incertezas e em clara mudança de paradigma.
O mundo imaginário focado em WALL·E é um mundo pós-moderno, no qual a humanidade se viu forçada a abandonar o planeta devido a uma crise global desencadeada pelo acumular de lixo não reciclado, causador de um índice de poluição que tornou insuportável a vida na Terra. O plano inicial de abandono temporário cedo se gorou. Não só a Terra estava ainda super poluída, como nunca mais seria possível voltar. Os humanos passaram a (sobre)viver no espaço, no interior de naves espaciais dotadas de uma população de robôs capazes de satisfazer todas as suas necessidades – básicas ou não. Entretanto, um verdadeiro exército de “WALL-E’s” – robôs propositadamente concebidos para a remoção de detritos – permaneceu na Terra para limpar o planeta do amontoado de resíduos sólidos deixados para trás. Setecentos anos após estes acontecimentos, apenas um robô continua operacional. WALL·E de seu nome como todos os outros, este peculiar personagem ganha, para além da devoção imediata do público, uma alma de gente durante todo esse tempo em que vai executando as suas solitárias funções na Terra. Tudo muito bem, até ao dia em que o seu quotidiano é repentinamente alterado pela chegada de Eve, um robô-fêmea, que faz tombar o “coração” do nosso WALL·E. A partir daí, assiste-se a todo um desenrolar de peripécias que vão mudando a atitude de Eve face a WALL·E, desde a desconfiança até à assumpção do sentimento de paixão mútuo. Uma vulgar história de amor, não fosse o facto de estarmos na presença de dois elementos que não fazem uso da fala, salvo a pronunciação repetida até à exaustão do nome um do outro, como se tal fosse suficiente para se compreenderem mutuamente. A missão de Eve é descobrir vestígios de plantas, indicador fiável das condições de vida na Terra, por sua vez imprescindíveis para um eventual regresso da humanidade ao seu lar natural. Pela mão de WALL-E, Eve descobre uma planta, prontamente levada para a nave espacial Axiom. Aqui, um conflito de interesses opõe o capitão da nave ao piloto automático: o primeiro quer regressar, o segundo vai por todos os meios procurar gorar essa intenção, sob o pretexto de obedecer a ordens dadas por Shelby Forthright, o último patrão da Buy n’ Large, empresa que administrara a Terra até ao êxodo humano. Como em todas as grandes histórias, assiste-se a um final feliz, no qual a humanidade volta à sua condição natural, não só à sua casa, mas sobretudo à locomoção bípede, até aí caída em desuso após centenas de anos passados em cadeirões flutuantes a bordo da Axiom.
WALL·E saldou-se em mais um estrondoso êxito comercial da Pixar, e ao mesmo tempo numa vitória pessoal do realizador Andrew Stanton, depois de vários anos e de algumas hesitações em avançar com o projecto. Conforme é regra de ouro na Pixar, também WALL·E traz consigo uma mensagem importante para miúdos e graúdos, relembrando a responsabilidade geral pela protecção ambiental como condição básica para a sobrevivência e qualidade de vida das gerações vindouras. O pano de fundo da história é uma incisiva chamada de atenção para erros que estão actualmente a ser cometidos, os quais poderão dar origem não a um cenário apocalíptico de robôs programados para limpar o lixo, mas a outros problemas quiçá mais gravosos. Conforme foi destacado por alguns comentadores, o filme vale acima de tudo pelas ideias que transmite, e pela maneira como penetra na mente do público, sensibilizando-o e fazendo-o pensar. E isto é especialmente aplicável ao público mais jovem, para quem WALL·E pode traduzir-se num exercício intelectual da maior importância.


quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A Nova Rússia.


E o grande urso russo engoliu a pobre presa chamada Geórgia. Depois da deterioração das relações bilaterais desde 2004, a ira do Kremlin abateu-se finalmente sobre a jovem república do Cáucaso, num confronto desigual e com vencedor pré-determinado. Medvedev deixou aqui um claro sinal de que não pretende nem vai seguir um estilo diferenciado do seu antecessor, muito menos mudar as directrizes da política externa russa num futuro próximo. A intervenção militar russa na Ossétia do Sul e na Abecásia – duas regiões autónomas com fortes tendências separatistas – pautou-se acima de tudo por uma eficácia extrema, de modo a revelar ao mundo uma Rússia que não mais se vergará resignada aos ditames do Ocidente.
Escudada pela condição de membro permanente do Conselho de Segurança, manietando à partida as Nações Unidas, a Rússia chama gradualmente a si a chama de outrora. Já não é mais o poder soviético, o tal que esmagava arbitrariamente ao mínimo sinal de rebelião, mas sim uma nova Rússia, renovada internamente e alicerçada numa cada vez mais estável condição económica. Ao contrário da União Soviética, a Rússia de hoje não pretende tornar-se numa potência hegemónica; aspira simplesmente à hegemonia regional. Pretende, pois, dar pinceladas certeiras num quadro geoestratégico que quer só para si. A Rússia, ao longo dos últimos quinze anos, reformulou a sua política interna, conferindo-lhe estabilidade através da implementação de novos métodos governativos, nem sempre transparentes, mas claramente adequados à situação herdada do regime soviético. O gigantesco país soube domesticar as suas elites e submeter os oligarcas à vontade do Kremlin, e é hoje possível afirmar com propriedade que o Kremlin voltou, após todos estes anos, a ditar a lei e a estender o seu braço musculado a todos os sectores da sociedade russa. Esta foi a grande obra de Putin, a que Medvedev vai dar continuidade.
A Geórgia foi o primeiro passo rumo a uma nova política de vizinhança, através da qual Moscovo pretende anunciar o fim da sua inércia face ao aproveitamento dos vazios de poder por parte dos Estados Unidos na sua antiga zona de influência. Posto isto, Tbilissi cometeu um crasso erro estratégico ao tentar consolidar o seu poder na Ossétia do Norte, abrindo caminho a uma mais do que esperada resposta militar russa, porque catapultada por uma situação interna positivamente inédita desde o colapso do comunismo. A Ossétia do Norte revelou-se um excelente começo para a Rússia dar início a uma nova fase nas suas relações internacionais, que se prevêem tumultuosas. Resta ver qual o rumo dos acontecimentos na cena internacional, quando se efectivar o choque de interesses que surgirá quando a Geórgia e a Ucrânia iniciarem de facto os respectivos processos de adesão à NATO; ou, por outras palavras, se a NATO conseguirá obter consenso interno suficiente para aceitar dois novos membros que trazem consigo desafios de uma dimensão tal que poderão pôr em risco o próprio futuro da organização.