segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Uma Metáfora à Vida.


Esta é a insignificante história de um elefante. Insignificante não por menosprezo do seu autor nem da sua obra, longe de mim de tal blasfémia, mas porque lá bem no fundo insignificantes são todos os seres vivos à face desta bola simpaticamente chamada Terra. Talvez até ela própria, quem sabe, seja insignificante.
Virtuosismos à parte, o que é certo é que o pobre do paquiderme andou tanto sob tanta neve, tanto frio, tanta lama para chegar a um sítio que lhe era mais estranho do que Lisboa e acabar como acabou, o pobre do bicho. Não digo como para não atrapalhar as leituras de ninguém, mas bem não foi, apesar das mordomias que chegou a receber e dos olhares atónitos e espantados de que era alvo. Ele e também o seu cornaca, Subhro feito Fritz pela imperial sapiência - que isto de tomar conta de elefantes não é coisa que se veja muito na velha e civilizada Europa, agora imagine-se o século XVI, com muito mundo ainda por desbravar.
Não aconteceram muitas peripécias durante a viagem do elefante à corte austríaca, mas as que aconteceram provam muito daquilo que é a natureza humana, que alheia à sua insignificância, ora se faz de forte, ora se faz de parva, ora se faz de coisa nenhuma, tornando-se mais insignificante ainda. Ou grotesca, ou seja lá o que for.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Comfortably Numb (1979).

Ir ao fundo do baú recordar músicas intemporais é um exercício fascinante. Faço-o com regularidade, apercebendo-me do bem que faz ouvir canções de outras décadas repletas de significado. É o caso de Comfortably Numb dos Pink Floyd, datada de 1979, e incluída no celebradíssimo The Wall. É realmente complicado ficar indiferente aos solos de Gilmour e ao refrão em forma de hino que os acompanha. Uma boa canção é como o whisky: quanto mais velha melhor.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

2008 - Crónica de Um Ano Atípico.


Aceitando com prazer o repto lançado pelos blogues Abertamente Falando e Colina Sagrada, deixo aqui a minha análise do que mais importante se passou no ano que agora finda:

O ano de 2008 foi pródigo em acontecimentos. Pode mesmo ter sido um ano de viragem para algumas concepções até aqui dadas como suficientemente sólidas para não precisaram de ser alteradas pelos menos durante as próximas décadas. Caíram muitas máscaras por esse mundo fora, mas houve três que caíram e que considero fundamentais. Como ano de transição, creio ser impossível destacar os mais relevantes acontecimentos do ano sem fazer referências, ainda que superficiais, a outros. Por isso, para evitar desconsiderações e imprecisões desnecessárias, opto por uma análise mais global.
Em primeiro lugar, a crise económica, depois financeira, depois económica e financeira. Contra as previsões mais optimistas para o crescimento da economia, a verdade é que o carácter marcadamente global desta crise parece ter abalado as fundições do sistema vigente desde a II Guerra Mundial. Caiu a máscara à ordem económica do pós-guerra. Muitos advogam não a morte do capitalismo, mas uma mais do que urgente reformulação deste. A palavra mais ouvida, a que faz qualquer adepto do liberalismo económico coçar-se, foi a mais ouvida em 2008 – a par, claro está, de “estagnação”, “recessão” ou “crise”: regulação. Regular os mercados, as instituições financeiras de crédito; regular o mercado habitacional, regular as trocas de capitais, regular as práticas obscuras de muitos gestores; regular e tornar mais transparente e credível o sistema financeiro, incentivar à poupança; e, acima de tudo, punir os responsáveis por danos irrecuperáveis causados a quem confia o seu dinheiro aos bancos. Para os que auguravam a morte do estado enquanto poder regulador, esta crise veio trocar completamente as voltas. Ao estado foi-lhe implorada a sua intervenção sob a forma de muitos zeros – vejamos se agora esse mesmo estado está em condições de se fazer pagar com a imposição de mais e melhores regras e, mais visível aos olhos do cidadão, com justiça.
Aproveitando o embalo de ideias como “estado” e “regulação”, destaque e honra seja feita à eleição do 44º Presidente dos EUA. Barack Obama, após uma transição que se afigura impecável, vai assumir as rédeas do (ainda) estado mais poderoso do mundo. Os EUA deixaram cair uma máscara que escondia a sua genuína identidade como povo democrático e tolerante. Do país que fez catapultar a crise económica, resta saber se vem também o antídoto. Obama inspira confiança, teve um discurso atractivo e eloquente durante a campanha mas será o motor da mudança necessária? Se os EUA não se assumirem como líderes de uma mudança anunciada, a sua posição no mundo estará definitivamente ameaçada. Não parece restar outro caminho ao novo Presidente que não um novo rumo para o seu país. O dia 5 de Novembro último pode ter sido o princípio de uma bela história. Ou não.
Um destaque final para uma questão intrinsecamente política e estratégica, que foi alvo de abrupta actualização em Agosto passado. Durante as Olimpíadas de Pequim, os olhos do mundo desviaram-se inesperadamente das piscinas e das pistas para o Cáucaso, região onde a Rússia fez questão de mostrar quem manda. Tal resposta seria impensável ainda há poucos anos. Enriquecida pelos petrorublos e dona de si como há muito não se via, o gigante russo marcou território e dissipou muitas dúvidas sobre a natureza do seu poder actual – centralizado, ambicioso, nacionalista e, pior, imperialista. Também a Rússia deixou cair a sua máscara para se tornar num dos mais sérios testes à União Europeia e aos EUA, ou por outras palavras, à unidade da UE (através da mais que duvidosa PESC) e à capacidade de influência dos EUA, respectivamente.
Venha 2009.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Retratando um Monstro.

Hitler sempre foi um olhado como um demónio da Humanidade. Os factos falam por si e não deixam mentir: uma guerra mundial, a qual deixou atrás de si um rasto de destruição sem precedentes na história do mundo, reclamando as vidas de 50 milhões de pessoas entre civis e militares, onde se incluem 6 milhões de judeus nos lamentavelmente famosos campos de extermínio. Cidades arrasadas, património irremediavelmente perdido e uma nova ordem mundial foram as pricipais consequências do turbilhão que alterou (a mal) a face do mundo entre 1939 e 1945.
Sendo muito embora bastante incomum os politólogos e historiadores centrarem as suas análises no nível puramente individual dos fenómenos sociais, a verdade é que o papel e a força aglutinadora deste indivíduo como sujeito histórico é um papel que ultrapassa o acaso e a superficialidade. A dimensão bíblica dos seus crimes aliada às sensibilidades que várias décadas depois ainda consegue ferir vai lateralizando a análise deste indivíduo pela via artística, como é o caso do cinema. Der Untergang, ou A Queda em português, vem de encontro à norma e, mais do que isso, distorce-a por completo ao focar o alegado lado humano, ou se quisermos, humanizante, do ditador autro-germânico.
Posto isto, A Queda é, desde logo, um filme misterioso. Nunca vai revelar tudo, vai sempre deixar à consideração do espectador aspectos fulcrais da personalidade de Hitler, vai sempre deixar muita coisa implícita. Mas não deixa por isso de ser um exercício cinematográfico marcado por uma toada assumidamente ambiciosa e, claro está, absolutamente fascinante - facto a que não é alheio o carácter eminentemente revisionista da obra.
Abaixo segue aquela que para mim é, por excelência, a cena que cola o espectador à cadeira e faz estremecer todos os sentidos do seu corpo: o momento em que Hitler se consciencializa da inevitável derrota final do III Reich às mãos das forças soviéticas que já se movimentavam nos escombros de Berlim. Pelo corpo do actor Bruno Ganz faíscam os olhos de Hitler, que vocifera enraivecido contra os seus, num momento marcadamente dramático e infinitamente perturbador. Obrigatório.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A Evitável Queda do Tio Sam.


O mundo já não é unipolar. Uns dizem que ainda é e será. Outros que ainda é, mas não por muito tempo. Outros ainda afirmam categoricamente que nunca foi. E, dentro destes, alguns dizem que é unimultipolar, outros que é simplesmente multipolar. A confusão do leitor não será menor que a do escriba. Quando os académicos não acertam, o comum dos mortais não fará por certo muito melhor, se bem que nestas coisas o senso comum conta e não é pouco.
Para clarificar estas e outras dúvidas, Fareed Zakaria, homem reputado, doutor por Harvard e actual editor internacional da Newsweek, traz a público um livro bem oportuno. Bem escrito, dentro da simplicidade possível, sem floreados e repleto de exemplos ilustrativos, Zakaria traça o ponto da situação da conturbada distribuição de poder a nível mundial. O retrato, esse, é claro: os EUA, outrora intocáveis, estão a perder terreno face às potências emergentes do Oriente, não só económica mas sobretudo politicamente. China e Índia são por isso os mais vibrantes e elucidativos desafios estratégicos com que os EUA terão de lidar.
Contrariamente ao convencionado, os novos poderes, explica Zakaria, não representam ascensões políticas ou militares do tipo tradicional. São, isso sim, ascensões pautadas por uma diplomacia tranquila, nada quezilenta, preocupada com a vertente económica e em estender o seu braço comercial a toda a Ásia e depois ao resto do mundo. Se a China ou mesmo a Índia fossem uma ameaça do tipo da que representava a União Soviética, os EUA estariam preparados. No entanto, para este novo tipo de ascensão e de crescendo pacífico, os EUA não estão preparados e serão forçados a mudar radicalmente de estratégia.
Mas como? Nas suas palavras, já nem se pode falar em futuro: “o futuro já está aqui”. Os anos 90 habituaram mal os EUA, que se tornaram preguiçosos, arrogantes e presunçosos na arena internacional. A unipolaridade fez mal a um país, que na economia sempre se privilegiou e incentivou a concorrência, mas que em termos de política externa se habituou a agir sozinho, sem obstáculos ao seu poder. E isso complica a resposta que terá de dar.
De acordo com Zakaria, “Washington ainda não descobriu que o imperialismo diplomático é um luxo que já não pode sustentar”. Ainda assim, os EUA têm todas as condições para conservarem o seu poder dominante, embora já não hegemónico. Para tal, terão de fazer escolhas e não gastar recursos em zonas do mundo onde não tenham muitas hipóteses de levar a sua avante; deverão procurar ser o motor da criação de regras, práticas e valores para que o mundo se possa reger; devem manter melhores relações com as novas potências do que elas mantêm entre si; deverão fazer mais trocas e compromissos com outros países; devem pensar assimetricamente e não se deixar iludir por ameaças sobreavaliadas como o terrorismo islâmico; e devem, last but not least, actuar com mais legitimidade, a qual será necessariamente fonte de poder na nova era em que entramos.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Quase Grandes.


O terceiro registo destes senhores soa a hino. Ou a hinos se quisermos. Durante a audição é fácil imaginar um tremendo coro de milhares de vozes a entoar entusiasticamente estas melodias numa qualquer sala de concertos, ou em qualquer estádio por esse mundo fora. Day and Age é muito bom. Não sem antes torcer o sobrolho, deparamo-nos com uns Killers desviados do caminho palmilhado até agora. Não soa ao (excessivamente) criticado Sam's Town, muito menos a Hot Fuss. Day and Age é como a Coca-Cola: primeiro estranha-se depois entranha-se. E de que maneira.
No início, além do sobrolho, torce-se também o nariz. Depois já custa menos, mas continua a soar estranho...Volta-se à faixa 1 mais algumas vezes. Até que finalmente os ouvidos se começam a habituar e a engraçar com esta surpresa. Chega a parecer que podiam ter sido os U2 a fazer aquilo. E o veredicto tarda mas sai, como diz o outro, firme e hirto: Day and Age não é muito bom. É fantástico. Além de Human, o primeiro single, o álbum destaca-se por pérolas como Losing Touch ou I Can't Say. Não consigo decidir qual a melhor. Menção honrosa para Goodnight, Travel Well, um pouco mais sombria que as restantes, mas uma saída esplendorosa para o álbum.
Experimentais q.b., Brandon Flowers e os seus estão de parabéns. Deu a volta a muito boa gente, esta sapatada de luva branca chamada Day and Age. Podem não ter passado o teste do segundo álbum, mas passaram certamente o do terceiro. Depois disto, os Killers transformaram-se numa caixa de pandora: o que virá dali a seguir? Futuro risonho para estes senhores.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Considerações Sobre Maquiavel (II).


Para Maquiavel, o cerne da questão reside no facto de que ser-se “liberal” é sinónimo de magnificência excessiva; o que significa despesa excessiva e perfeitamente desnecessária. Ao actuar desta forma, acabarão depressa as capacidades financeiras do Príncipe, e começará rapidamente a sobrecarga fiscal sobre o povo – com o correspondente descontentamento e revolta contra o soberano. Não é vital para um Príncipe um gasto deste género. É possível, com muito menos gastos e com mais paciência, obter o apoio do povo sem o risco de o perder a curto prazo: o apoio dos súbditos resultará gradualmente, quando estes se derem conta de que o Príncipe é capaz de “empreender cometimentos” sem custos adicionais.
O Florentino oferece uma perspectiva económica do realismo político, mais concretamente, uma perspectiva de contenção de gastos. Uma estratégia de poupança valerá a fama de “somítico” ao Príncipe, uma fama que depressa se dissipará num momento de maior necessidade e aperto para o Estado. Em conformidade com o seu modo de pensar – não se pode hesitar em usar de quantos vícios quantos necessários – também aqui ser-se “somítico” é positivo e permite ao Príncipe não ser odiado e reinar em paz.
A liberalidade só pode ser admitida na acção política se para tal forem usados os bens dos outros, isto é, o resultado de pilhagens e saques de cidades conquistadas ou inimigas. A riqueza retirada destas investidas compensará portanto o referido vício de “somítico” do Príncipe, que, ao sê-lo, defende apenas o que é dele. O soberano não precisa de gastar o que é seu, visto que pode comprar o apoio dos seus soldados e súbditos com aquilo que é extorquido a outrem.
Maquiavel, como é sabido, considera a natureza humana negativa e, pior que tudo, imutável. O recurso a exemplos do passado constitui então prova fiel e sólida daquilo que pretende ilustrar. Se era verdade antes, também o é agora. Maquiavel prova assim o seu ponto de vista através dos exemplos de Júlio II e de Júlio César. É possível neste ponto definir um pouco mais da identidade ideal do Príncipe: um homem moldado pela “experiência histórica real”, que coloca os fins antes dos meios.
Maquiavel foi, conclui-se, pioneiro num modo muito específico de ver a realidade. De ver o “ser” em vez do “dever-ser”. Citando Viriato Soromenho Marques, o texto de Maquiavel “situa-se claramente na zona dos paradigmas clássicos da Realpolitik”, do qual o capítulo XVI constitui ilustrativo exemplo.