quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Autobiografia de Niculae Ceausescu (2010)

A “Autobiografia de Niculae Ceausescu” apresenta um retrato impressionante do regime que durante décadas atormentou e amordaçou o povo romeno. O filme de Andrei Ujica mostra-nos os bastidores da tirania, do seu inexcedível cinismo e da terrível encenação do seu poder.
Esta “Autobiografia” reflecte fielmente a teatralidade do regime, das suas práticas, das bases nas quais assenta o seu poder. É um documento prodigioso, um deslumbrante “flashback” visual de uma grande parte do regime comunista romeno, centrado na sua figura cimeira, e exibindo o maniqueísmo do regime em toda a sua plenitude. Sublinhe-se a forma como regime instrumentaliza os espectáculos públicos e as grandes concentrações de massas para fins propagandísticos, com a pretensão de legitimar o comunismo como o destino final do país.
Outros líderes comunistas como Mao, Dubcek ou Kim Il-sung aparecem como personagens de um enredo que ultrapassa as suas figuras para se centrar nesse “corpus” político que é o internacionalismo comunista e no aparente espírito de solidariedade e cooperação entre os seus regimes. Impressionam as recepções a Ceausescu em Pequim, e particularmente em Pyongyang, que não deixam de remeter para a dimensão do poderio do estado totalitário comunista e para a consequente obliteração do cidadão enquanto ser pensante.
Ocasiões como os seus aniversários, o doutoramento honoris causa atribuído pela Universidade de Bucareste, ou a aclamação de que foi alvo no 12º Congresso do Partido Comunista após uma voz contra (que terá acontecido a esse homem?), confluem numa estratégia de encenação tendente a alimentar o culto da personalidade que caracterizou o regime do ditador. É transversal ao filme uma preocupação em fazer notar a imagem de catarse colectiva em torno da sua figura, em todos os seus discursos e actos públicos, como se a absoluta clarividência e capacidade de decisão perante os problemas e os desafios do país fosse, a ser possível, um exclusivo seu.
O filme de Ujica coloca-nos perante um ditador que apreciava a visibilidade pública. Através de aparições milimetricamente preparadas, a sua imagem de força e poder não era descurada em nenhuma ocasião. A propaganda mostra Ceausescu em permanente contacto com populares, que maquinalmente lhe vão endereçando felicidades, saúde e uma vida longa.
Talvez resida aqui o maior mérito de Ujica: o de conseguir desmontar a imagem de Ceaucescu e a sua linguagem política virando-os, com meritória minúcia e precisão, contra o objectivo para o qual foram concebidos.
Trata-se de um grande “flashback” biográfico imaginado por Ceausescu aquando da sua detenção, em finais de 1989, deixando sub-reptício o tipo de evolução social de um país governado com mão de ferro ao longo de quase 25 anos, e a plasticidade e mecanicismo do seu regime – uma receita sobejamente comum a outros regimes congéneres. A sua imperturbável expressão facial por ocasião da sua captura demonstra inequivocamente uma nítida altivez, colocando a nu a sua arrogância, e uma perturbadora obstinação, que acabem por incorporar a natureza férrea do seu regime. Assim ditam estes hipnotizantes 180 minutos.
O “filme ficção” de Ujica faz acreditar que a ideologia política de que as ditaduras se servem pode ser de tal ordem poderosa que se torna capaz de reproduzir nos seus líderes um grau de fanatismo tal que os acompanha até ao momento em que encaram a morte.