Portugal
vive hoje tempos assoberbados. Vem escrevendo uma página sombria da sua quase
milenar História. Se a afamada crise não surgiu de rompante, cozinhada nos
corredores dos grandes bancos de investimento transnacionais com a complacência
dos governos democraticamente eleitos, não é menos verdade que o país se deixou
arrastar pelo canto da sereia do crédito fácil, inebriado pelos dinheiros de
Bruxelas, desleixando os sectores económicos tradicionais, a indústria, a
agricultura e as pescas.
Hoje,
Portugal é um país à deriva, tristonho. Nesta hora sombria, o país naturalmente
belo e paisagisticamente diverso contrasta com a melancolia das gentes que
calcorreiam as suas ruas e praças. Nelas já não se respira ares de esperança,
antes brota um sentimento quase generalizado de angústia, de incerteza, de
desconfiança, de descrença naquilo que até um passado bem recente eram o grande
sustentáculo das suas vidas: o trabalho com horizontes, os filhos na escola com
um futuro à vista, enfim, o acesso às pequenas folestrias da vida que os pais e
avós nunca tiveram.
Hoje,
grassa na sociedade portuguesa aquilo que de pior pode acontecer a uma
sociedade organizada: Portugal é, com mais ou menos culpa no cartório, um país açambarcado
pelo medo.
Este
medo tem sido transposto para a nossa vida em sociedade numa dimensão até agora
desconhecida. Pelo menos em tempos democráticos. Este medo tem alimentado a
descrença em nós próprios, tem tolhido a nossa capacidade de acção perante as
circunstâncias e perante os tremendos desafios que se perfilam.
Este
medo tem amordaçado a capacidade crítica e de reacção do país, tanto na esfera
pública como na esfera privada. Em grande parte das empresas e das
organizações, grassam sentimentos de desconfiança entre os colaboradores, e
entre estes e as suas chefias superiores ou intermédias. Estes tempos conturbados
têm sufocado a liberdade criativa e crítica perante problemas e ineficiências
que regularmente surgem. O que vem crescendo, como erva daninha, isso sim, é um
silencioso e subentendido apelo para a prossecução do trabalho dentro de
limites previamente balizados, sem incómodos alaridos ou demais obstinações.
O
desemprego é uma hemorragia social que, atingidas as actuais proporções
estratosféricas contribui inapelavelmente para esta deterioração do clima
social. Tem acirrado os portugueses uns contra os outros, tem espicaçado
sentimentos de cobiça e inveja e tem, sobretudo, alimentado o ciclo-vicioso que
tão é nefasto para Portugal, essa doença crónica de que Portugal padece há
séculos: o chico-espertismo, a pequena irregularidade, o fechar de olhos, o
amiguismo e a cunha. Esta condição social do país é, no quotidiano, quase
palpável. Esta crise tem tanto de económico e financeiro como de
comportamental.
São
tempos complexos e contraditórios. A vivência do presente, por manifesta impossibilidade
de avistar um futuro previsível, alimenta os seculares males do país. Logo hoje,
que Portugal tanto precisava de um corte com as condições do passado, dá
impressão que é impossível mudar verdadeiramente.
Não sei
se estamos realmente interessados em mudar. A crise veio acirrar visões
imediatistas, tanto no plano das opções políticas que têm vindo ser tomar, como
nas escolhas e exigências pessoais com que somos confrontados. Hoje, só o
presente imediato parece ser opção. Hoje, encolhem-se os ombros perante o
deserto de oportunidades que nos é servido.
A
vozearia não aponta um rumo aceitável de longo-prazo. Prevalecem os interesses
sectários sobre o interesse geral do país. Os interesses e expectativas individuais,
admitamos, são tendencialmente enquadrados em interesses de classe, que escutados
individualmente não apresentam soluções de ruptura, antes apontam
desesperadamente aos confortos do passado recente que nos trouxe à ruína.
Não
existe, em Portugal, massa crítica suficiente na sociedade civil capaz de pensar
o destino colectivo do país, capaz de levar a cabo uma reflexão profunda e,
sobretudo, neutra sobre as mudanças a efectuar no longo-prazo. Não há consenso nem
esclarecimento suficiente sobre o que deve permanecer e o que deve ser
combatido, que sectores de actividade devem ser prioritários para que Portugal
seja um país sustentável, viável e com um futuro.
Assiste-se,
pelo contrário, a um frenesim delator nas redes sociais, a muita energia gasta
em acusações contra a classe política (o confortável “eles”), aos seus roubos e
abusos, às pequenas minudências do dia-a-dia da nossa vida pública, estridência
que a crise de resto acicatou, mas que é inócua na altura de resolver
problemas.
Hoje,
os portugueses sabem que têm que fazer sacrifícios mas desconfiam deles. Sabem
que algo de terrivelmente mau veio acontecendo nas últimas décadas. Sabem, no
seu íntimo, que a mudança teria, algum dia, de acontecer. Só não sabiam que o
céu lhes iria cair sobre a cabeça. Sabiam, lá bem no fundo, que algum dia o
esbanjamento de tanto dinheiro público teria um preço. Sabiam que o país não
tinha uma economia suficientemente robusta nem inovadora para aguentar tempos
difíceis. A queixa sobre a inoperância e corrupção, pequena ou grande, da
classe política central e do poder local foi sempre um discurso omnipresente,
tanto em tempos de vacas-gordas como em tempos de crise. Nada foi feito.
A
crise coloca em risco não só o bem-estar material dos portugueses, mas também a
ordem constitucional vigente e a paz social. Hoje, é crença generalizada de que
uma ruptura é incontornável. Ela surgirá, não se duvide. Mas é preciso que seja
a ruptura certa, que aponte caminhos de futuro e que não derive somente do
actual clima de crispação, revolta e denúncia. É preciso que seja uma ruptura
esclarecida, racional, em que cada um assuma o seu papel como cidadão
responsável. A figura do cidadão é a mais frágil na relação entre político e
poder económico, e assiste-lhe o direito à intervenção. O cidadão pode e deve
exigir mudanças. Mas deve esforçar-se por ver o todo e não a parte, deve
esforçar-se por pensar colectivamente os problemas e por ser parte de soluções
conjuntas. Deve procurar ser mais informado e mais consciente das suas
decisões. Só assim poderá ser agente de uma verdadeira mudança: exercendo o seu
poder soberano de forma mais esclarecida e preservar a vida colectiva em
liberdade. Com cidadãos assim, a democracia estaria salva. Tudo o que vá para
além disto é uma obscura incerteza, um terreno minado que todos agora
enxergamos, mas que poucos estarão na disposição de experimentar.
Hoje,
há necessidade de revolta, mas não de revolução. Ou antes, esta seria a
verdadeira revolução.