segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Uma Metáfora à Vida.


Esta é a insignificante história de um elefante. Insignificante não por menosprezo do seu autor nem da sua obra, longe de mim de tal blasfémia, mas porque lá bem no fundo insignificantes são todos os seres vivos à face desta bola simpaticamente chamada Terra. Talvez até ela própria, quem sabe, seja insignificante.
Virtuosismos à parte, o que é certo é que o pobre do paquiderme andou tanto sob tanta neve, tanto frio, tanta lama para chegar a um sítio que lhe era mais estranho do que Lisboa e acabar como acabou, o pobre do bicho. Não digo como para não atrapalhar as leituras de ninguém, mas bem não foi, apesar das mordomias que chegou a receber e dos olhares atónitos e espantados de que era alvo. Ele e também o seu cornaca, Subhro feito Fritz pela imperial sapiência - que isto de tomar conta de elefantes não é coisa que se veja muito na velha e civilizada Europa, agora imagine-se o século XVI, com muito mundo ainda por desbravar.
Não aconteceram muitas peripécias durante a viagem do elefante à corte austríaca, mas as que aconteceram provam muito daquilo que é a natureza humana, que alheia à sua insignificância, ora se faz de forte, ora se faz de parva, ora se faz de coisa nenhuma, tornando-se mais insignificante ainda. Ou grotesca, ou seja lá o que for.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Comfortably Numb (1979).

Ir ao fundo do baú recordar músicas intemporais é um exercício fascinante. Faço-o com regularidade, apercebendo-me do bem que faz ouvir canções de outras décadas repletas de significado. É o caso de Comfortably Numb dos Pink Floyd, datada de 1979, e incluída no celebradíssimo The Wall. É realmente complicado ficar indiferente aos solos de Gilmour e ao refrão em forma de hino que os acompanha. Uma boa canção é como o whisky: quanto mais velha melhor.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

2008 - Crónica de Um Ano Atípico.


Aceitando com prazer o repto lançado pelos blogues Abertamente Falando e Colina Sagrada, deixo aqui a minha análise do que mais importante se passou no ano que agora finda:

O ano de 2008 foi pródigo em acontecimentos. Pode mesmo ter sido um ano de viragem para algumas concepções até aqui dadas como suficientemente sólidas para não precisaram de ser alteradas pelos menos durante as próximas décadas. Caíram muitas máscaras por esse mundo fora, mas houve três que caíram e que considero fundamentais. Como ano de transição, creio ser impossível destacar os mais relevantes acontecimentos do ano sem fazer referências, ainda que superficiais, a outros. Por isso, para evitar desconsiderações e imprecisões desnecessárias, opto por uma análise mais global.
Em primeiro lugar, a crise económica, depois financeira, depois económica e financeira. Contra as previsões mais optimistas para o crescimento da economia, a verdade é que o carácter marcadamente global desta crise parece ter abalado as fundições do sistema vigente desde a II Guerra Mundial. Caiu a máscara à ordem económica do pós-guerra. Muitos advogam não a morte do capitalismo, mas uma mais do que urgente reformulação deste. A palavra mais ouvida, a que faz qualquer adepto do liberalismo económico coçar-se, foi a mais ouvida em 2008 – a par, claro está, de “estagnação”, “recessão” ou “crise”: regulação. Regular os mercados, as instituições financeiras de crédito; regular o mercado habitacional, regular as trocas de capitais, regular as práticas obscuras de muitos gestores; regular e tornar mais transparente e credível o sistema financeiro, incentivar à poupança; e, acima de tudo, punir os responsáveis por danos irrecuperáveis causados a quem confia o seu dinheiro aos bancos. Para os que auguravam a morte do estado enquanto poder regulador, esta crise veio trocar completamente as voltas. Ao estado foi-lhe implorada a sua intervenção sob a forma de muitos zeros – vejamos se agora esse mesmo estado está em condições de se fazer pagar com a imposição de mais e melhores regras e, mais visível aos olhos do cidadão, com justiça.
Aproveitando o embalo de ideias como “estado” e “regulação”, destaque e honra seja feita à eleição do 44º Presidente dos EUA. Barack Obama, após uma transição que se afigura impecável, vai assumir as rédeas do (ainda) estado mais poderoso do mundo. Os EUA deixaram cair uma máscara que escondia a sua genuína identidade como povo democrático e tolerante. Do país que fez catapultar a crise económica, resta saber se vem também o antídoto. Obama inspira confiança, teve um discurso atractivo e eloquente durante a campanha mas será o motor da mudança necessária? Se os EUA não se assumirem como líderes de uma mudança anunciada, a sua posição no mundo estará definitivamente ameaçada. Não parece restar outro caminho ao novo Presidente que não um novo rumo para o seu país. O dia 5 de Novembro último pode ter sido o princípio de uma bela história. Ou não.
Um destaque final para uma questão intrinsecamente política e estratégica, que foi alvo de abrupta actualização em Agosto passado. Durante as Olimpíadas de Pequim, os olhos do mundo desviaram-se inesperadamente das piscinas e das pistas para o Cáucaso, região onde a Rússia fez questão de mostrar quem manda. Tal resposta seria impensável ainda há poucos anos. Enriquecida pelos petrorublos e dona de si como há muito não se via, o gigante russo marcou território e dissipou muitas dúvidas sobre a natureza do seu poder actual – centralizado, ambicioso, nacionalista e, pior, imperialista. Também a Rússia deixou cair a sua máscara para se tornar num dos mais sérios testes à União Europeia e aos EUA, ou por outras palavras, à unidade da UE (através da mais que duvidosa PESC) e à capacidade de influência dos EUA, respectivamente.
Venha 2009.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Retratando um Monstro.

Hitler sempre foi um olhado como um demónio da Humanidade. Os factos falam por si e não deixam mentir: uma guerra mundial, a qual deixou atrás de si um rasto de destruição sem precedentes na história do mundo, reclamando as vidas de 50 milhões de pessoas entre civis e militares, onde se incluem 6 milhões de judeus nos lamentavelmente famosos campos de extermínio. Cidades arrasadas, património irremediavelmente perdido e uma nova ordem mundial foram as pricipais consequências do turbilhão que alterou (a mal) a face do mundo entre 1939 e 1945.
Sendo muito embora bastante incomum os politólogos e historiadores centrarem as suas análises no nível puramente individual dos fenómenos sociais, a verdade é que o papel e a força aglutinadora deste indivíduo como sujeito histórico é um papel que ultrapassa o acaso e a superficialidade. A dimensão bíblica dos seus crimes aliada às sensibilidades que várias décadas depois ainda consegue ferir vai lateralizando a análise deste indivíduo pela via artística, como é o caso do cinema. Der Untergang, ou A Queda em português, vem de encontro à norma e, mais do que isso, distorce-a por completo ao focar o alegado lado humano, ou se quisermos, humanizante, do ditador autro-germânico.
Posto isto, A Queda é, desde logo, um filme misterioso. Nunca vai revelar tudo, vai sempre deixar à consideração do espectador aspectos fulcrais da personalidade de Hitler, vai sempre deixar muita coisa implícita. Mas não deixa por isso de ser um exercício cinematográfico marcado por uma toada assumidamente ambiciosa e, claro está, absolutamente fascinante - facto a que não é alheio o carácter eminentemente revisionista da obra.
Abaixo segue aquela que para mim é, por excelência, a cena que cola o espectador à cadeira e faz estremecer todos os sentidos do seu corpo: o momento em que Hitler se consciencializa da inevitável derrota final do III Reich às mãos das forças soviéticas que já se movimentavam nos escombros de Berlim. Pelo corpo do actor Bruno Ganz faíscam os olhos de Hitler, que vocifera enraivecido contra os seus, num momento marcadamente dramático e infinitamente perturbador. Obrigatório.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A Evitável Queda do Tio Sam.


O mundo já não é unipolar. Uns dizem que ainda é e será. Outros que ainda é, mas não por muito tempo. Outros ainda afirmam categoricamente que nunca foi. E, dentro destes, alguns dizem que é unimultipolar, outros que é simplesmente multipolar. A confusão do leitor não será menor que a do escriba. Quando os académicos não acertam, o comum dos mortais não fará por certo muito melhor, se bem que nestas coisas o senso comum conta e não é pouco.
Para clarificar estas e outras dúvidas, Fareed Zakaria, homem reputado, doutor por Harvard e actual editor internacional da Newsweek, traz a público um livro bem oportuno. Bem escrito, dentro da simplicidade possível, sem floreados e repleto de exemplos ilustrativos, Zakaria traça o ponto da situação da conturbada distribuição de poder a nível mundial. O retrato, esse, é claro: os EUA, outrora intocáveis, estão a perder terreno face às potências emergentes do Oriente, não só económica mas sobretudo politicamente. China e Índia são por isso os mais vibrantes e elucidativos desafios estratégicos com que os EUA terão de lidar.
Contrariamente ao convencionado, os novos poderes, explica Zakaria, não representam ascensões políticas ou militares do tipo tradicional. São, isso sim, ascensões pautadas por uma diplomacia tranquila, nada quezilenta, preocupada com a vertente económica e em estender o seu braço comercial a toda a Ásia e depois ao resto do mundo. Se a China ou mesmo a Índia fossem uma ameaça do tipo da que representava a União Soviética, os EUA estariam preparados. No entanto, para este novo tipo de ascensão e de crescendo pacífico, os EUA não estão preparados e serão forçados a mudar radicalmente de estratégia.
Mas como? Nas suas palavras, já nem se pode falar em futuro: “o futuro já está aqui”. Os anos 90 habituaram mal os EUA, que se tornaram preguiçosos, arrogantes e presunçosos na arena internacional. A unipolaridade fez mal a um país, que na economia sempre se privilegiou e incentivou a concorrência, mas que em termos de política externa se habituou a agir sozinho, sem obstáculos ao seu poder. E isso complica a resposta que terá de dar.
De acordo com Zakaria, “Washington ainda não descobriu que o imperialismo diplomático é um luxo que já não pode sustentar”. Ainda assim, os EUA têm todas as condições para conservarem o seu poder dominante, embora já não hegemónico. Para tal, terão de fazer escolhas e não gastar recursos em zonas do mundo onde não tenham muitas hipóteses de levar a sua avante; deverão procurar ser o motor da criação de regras, práticas e valores para que o mundo se possa reger; devem manter melhores relações com as novas potências do que elas mantêm entre si; deverão fazer mais trocas e compromissos com outros países; devem pensar assimetricamente e não se deixar iludir por ameaças sobreavaliadas como o terrorismo islâmico; e devem, last but not least, actuar com mais legitimidade, a qual será necessariamente fonte de poder na nova era em que entramos.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Quase Grandes.


O terceiro registo destes senhores soa a hino. Ou a hinos se quisermos. Durante a audição é fácil imaginar um tremendo coro de milhares de vozes a entoar entusiasticamente estas melodias numa qualquer sala de concertos, ou em qualquer estádio por esse mundo fora. Day and Age é muito bom. Não sem antes torcer o sobrolho, deparamo-nos com uns Killers desviados do caminho palmilhado até agora. Não soa ao (excessivamente) criticado Sam's Town, muito menos a Hot Fuss. Day and Age é como a Coca-Cola: primeiro estranha-se depois entranha-se. E de que maneira.
No início, além do sobrolho, torce-se também o nariz. Depois já custa menos, mas continua a soar estranho...Volta-se à faixa 1 mais algumas vezes. Até que finalmente os ouvidos se começam a habituar e a engraçar com esta surpresa. Chega a parecer que podiam ter sido os U2 a fazer aquilo. E o veredicto tarda mas sai, como diz o outro, firme e hirto: Day and Age não é muito bom. É fantástico. Além de Human, o primeiro single, o álbum destaca-se por pérolas como Losing Touch ou I Can't Say. Não consigo decidir qual a melhor. Menção honrosa para Goodnight, Travel Well, um pouco mais sombria que as restantes, mas uma saída esplendorosa para o álbum.
Experimentais q.b., Brandon Flowers e os seus estão de parabéns. Deu a volta a muito boa gente, esta sapatada de luva branca chamada Day and Age. Podem não ter passado o teste do segundo álbum, mas passaram certamente o do terceiro. Depois disto, os Killers transformaram-se numa caixa de pandora: o que virá dali a seguir? Futuro risonho para estes senhores.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Considerações Sobre Maquiavel (II).


Para Maquiavel, o cerne da questão reside no facto de que ser-se “liberal” é sinónimo de magnificência excessiva; o que significa despesa excessiva e perfeitamente desnecessária. Ao actuar desta forma, acabarão depressa as capacidades financeiras do Príncipe, e começará rapidamente a sobrecarga fiscal sobre o povo – com o correspondente descontentamento e revolta contra o soberano. Não é vital para um Príncipe um gasto deste género. É possível, com muito menos gastos e com mais paciência, obter o apoio do povo sem o risco de o perder a curto prazo: o apoio dos súbditos resultará gradualmente, quando estes se derem conta de que o Príncipe é capaz de “empreender cometimentos” sem custos adicionais.
O Florentino oferece uma perspectiva económica do realismo político, mais concretamente, uma perspectiva de contenção de gastos. Uma estratégia de poupança valerá a fama de “somítico” ao Príncipe, uma fama que depressa se dissipará num momento de maior necessidade e aperto para o Estado. Em conformidade com o seu modo de pensar – não se pode hesitar em usar de quantos vícios quantos necessários – também aqui ser-se “somítico” é positivo e permite ao Príncipe não ser odiado e reinar em paz.
A liberalidade só pode ser admitida na acção política se para tal forem usados os bens dos outros, isto é, o resultado de pilhagens e saques de cidades conquistadas ou inimigas. A riqueza retirada destas investidas compensará portanto o referido vício de “somítico” do Príncipe, que, ao sê-lo, defende apenas o que é dele. O soberano não precisa de gastar o que é seu, visto que pode comprar o apoio dos seus soldados e súbditos com aquilo que é extorquido a outrem.
Maquiavel, como é sabido, considera a natureza humana negativa e, pior que tudo, imutável. O recurso a exemplos do passado constitui então prova fiel e sólida daquilo que pretende ilustrar. Se era verdade antes, também o é agora. Maquiavel prova assim o seu ponto de vista através dos exemplos de Júlio II e de Júlio César. É possível neste ponto definir um pouco mais da identidade ideal do Príncipe: um homem moldado pela “experiência histórica real”, que coloca os fins antes dos meios.
Maquiavel foi, conclui-se, pioneiro num modo muito específico de ver a realidade. De ver o “ser” em vez do “dever-ser”. Citando Viriato Soromenho Marques, o texto de Maquiavel “situa-se claramente na zona dos paradigmas clássicos da Realpolitik”, do qual o capítulo XVI constitui ilustrativo exemplo.

sábado, 29 de novembro de 2008

Considerações Sobre Maquiavel (I).


Considerada uma das obras mais influentes e importantes da história do pensamento político ocidental, O Príncipe de Nicolau Maquiavel marcou indelevelmente uma forma de pensar e de estar na política. Devido ao seu hiper realismo e à sua visão egocêntrica do mundo, é por muitos considerada uma obra imoral e desprovida de escrúpulos, designadamente quando se trata de lidar com os assuntos do estado. Não obstante, o pensamento do “Secretário Florentino” reveste-se de uma originalidade singular no campo da Ciência Política, especialmente no que respeita à introdução de novas metodologias de investigação e análise, e ao desenvolvimento de conceitos-chave para esta mesma ciência. Inclusivamente, nas palavras de Freitas do Amaral, e como “o segundo grande politólogo da história”, é responsável pela autonomização dos fenómenos políticos em relação aos restantes fenómenos sociais; bem como pela tentativa de formulação das “leis da política”. Consequentemente, é também um dos responsáveis directos pelo nascimento de uma nova ciência.
A natureza d’O Príncipe é ímpar e muito distinta da de outras obras de filosofia política. Em suma, o livro é um “guia prático” de como alcançar e manter o poder nos vários tipos de principados oportunamente diferenciados pelo Florentino. Nas reflexões sobre a função da liberalidade na acção principesca, Maquiavel foi mais longe que os outros, não só descrevendo a realidade das lutas viscerais pelo poder tal como elas são, mas também incitando à prática de actos vis, cobardes e maléficos caso sejam necessários para o referido alcance e manutenção do poder – aliás fim único e último de toda a acção política. Aqui reside a verdadeira essência do badalado “maquiavelismo”, uma crença absoluta na perfídia inata da natureza do homem, desembocada numa necessária secundarização do papel da moralidade na política, se o objectivo passa por consolidar um posto como governante.
Maquiavel reserva, portanto, um lugar limitado para a liberalidade. Para defesa do realismo político, desdobra-se em considerações e exemplos práticos: “[O Príncipe] encontrará algo que parecerá ser virtude, mas que, se lhe obedecer, será a sua ruína, e algo que lhe parecerá ser vício, mas que, se lhe obedecer, lhe dará segurança e estabilidade.” A liberalidade não passa, assim, de uma das virtudes que pode levar à ruína do Príncipe. O que é virtuoso na moralidade é, na maior parte das vezes, um vício na política.
E é esta irredutibilidade que para mim, sem ofensa, é por demais deliciosa em Maquiavel. É reprovável o uso de práticas liberais apenas por incluírem contornos eticamente aplaudíveis. Afinal de contas, toda a realpolitik veio beber a Maquiavel. O mundo de hoje não lhe dá razão, no entender de uns. Mas outros negam veementemente que a política sirva exclusivamente o bem comum. Para mim, a natureza humana não deixa o Homem ir mais longe. Muitos podem dizer: mas há excepções. Sim, excepções. Não me levem a mal, mas a política, no seu significado mais empírico, é maquiavélica.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Смерть Ивана Ильича.


Pode não haver romances perfeitos. É bem provável que não existam. A literatura, como toda a arte, é um mundo de possibilidades infinitas. Mas há histórias, que contadas por determinadas palavras, parecem conter dentro de si todo o universo humano. É o caso de um pequeno romance escrito por Tolstoi, de poucas delongas, pouco conhecido, mas não por isso menos belo, nem menos profundo.
A descrição da Morte, como se não fosse preciso mais. Tolstoi traça um retrato envenenado da superficialidade da sociedade da época, tão terrível quanto actual. É uma sociedade que aliena o indivíduo, que por medo aceita, segue e promove os seus padrões de comportamento, sem questionar. Tudo na vida de Ivan Ilitch foi feito para agradar à norma, à convenção: o casamento, a casa e a decoração desta, o trabalho como meio e depois como fuga, as festas. Quão nefastamente deixamos de ser nós se assim for. Quão deturpada é uma vida que não se vive, apenas se existe.
Ivan Ilitch, ontem como hoje, é um revoltado. Como é possível que numa vida aparentemente tão longa, tão trabalhosa, tão cheia de escolhas e de caminhos, apenas a infância valha a pena? No seu leito de Morte, horrenda e incontornável, Ilitch recorda o sabor das ameixas que comia. E de novo parava na infância, e de novo era doloroso…Lindo.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Genial Apocalipse.


Saramago, para além das divinas capacidades de redacção amplamente reconhecidas, é um inventor. Não daqueles que com bata branca estão enfiados em laboratórios a testar reagentes ou daqueles que procuram sulcar novos caminhos para a mecânica ou para a informática; mas daqueles raros seres que fazem rejubilar os seus humildes e embevecidos apreciadores face aos laivos de génio puro que resvalam das suas linhas. Saramago é um predestinado.
Ensaio Sobre a Cegueira, traduzido para o cinema como Blindness, é uma obra que chama a si um mundo apocalíptico saído da mestria de Saramago. Tornando o simples complicado, e o complicado simples, Saramago traça o caótico sucedâneo de acontecimentos despoletados por uma cegueira branca que inexplicavelmente se vai abatendo sobre a Humanidade. Numa cidade qualquer de um país qualquer, num ano qualquer, o terrível fenómeno alastra imparavelmente a todos quanto vêem, fazendo vir ao de cima o mais básico e incontornável da natureza humana. Deixa de haver fachadas sociais, deixa de haver segundas necessidades, deixa de haver ordem e hierarquia, deixa de haver vergonha; mas não deixa de haver sentimentos de pertença, nem deixa de haver entreajuda, nem deixa de haver amor – nem dignidade.
Roubar à Humanidade a faculdade de um dos seus sentidos conduz à destruição da sociedade sobre a qual construímos as nossas crenças e os nossos valores. Sob pano de fundo, está o desmoronar das instituições do Estado e de ordem pública, tornando a vida numa luta pela encarniçada e brutal pela sobrevivência, à espera de um futuro que faria à partida muito pouco sentido. É ler para crer. Saramago, com um premissa aparentemente simples, mergulha o mundo numa assustadora incerteza, que tem tanto de imaginária quanto de real: Até que ponto não andaremos todos cegos, mesmo vendo?

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Premiere - Página 56.


É bom ser-se citado na Premiere, mesmo que numas modestíssimas e quase insignificantes linhas:

Bond é sinónimo de estilo, de classe, é o supra-sumo da masculinidade. Ou de como ela deveria ser. Bond está rodeado de mística, é a sublimação perfeita do trato, da sofisticação, do peculiarmente belo e atraente. Bond personifica uma certa aura de mistério, onde a confiança é um mito e o dever uma obrigação. Não há dúvidas: Bond é inigualável. Seja Connery, Lazenby, Moore, Dalton, Brosnan ou Craig. [Outros virão, outros estão por certo à altura. Bond tem muitas caras mas é só um.]

Premiere - Novembro 2008

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Obama Para a Posteridade.


Sente-se o peso da História. Barack Hussein Obama, um jovial político americano de sorriso fácil e cativante, com um nome exótico e de proveniências pouco habituais, metade americano, metade queniano, com um passado dividido entre o Havai e a Indonésia, é o 44º Presidente dos Estados Unidos da América. Não é uma série televisiva, não é um filme, não é ficção. O Presidente dos Estados Unidos é um negro, e uma lufada de optimismo e esperança varre o mundo. A História saberá a seu tempo julgar e apreciar devidamente este momento, mas é já mais do que certo que um mito foi quebrado.
Num país que só há 40 anos oficializou o fim da segregação racial, um negro foi eleito. Esta é a inquestionável prova de que os Estados Unidos, tal como os concebíamos, não são os mesmos. A América quer recuperar o ideal romântico de "terra das oportunidades" que sempre teve aos olhos dos povos de todo o mundo. Uma terra com muitos defeitos é certo, mas onde todos têm espaço, onde todos cabem, e onde todos têm uma oportunidade para serem felizes e (re)construírem as suas vidas. É por isso que esta eleição confirmou o que muitos pareciam ter esquecido: que a América é um país aberto à mudança e a novos rumos políticos e sociais sempre que se justifique. A América recuperou a sua identidade e o seu orgulho, não só perante o mundo mas, mais importante, perante si mesma. Mostrou que a sua democracia é capaz de se rejuvenescer e de mandar uma pedrada no charco quando as coisas vão realmente mal. Na Europa e no resto mundo livre, os seus líderes e povos esfregam as mãos: a América está de volta.
Sente-se, com esta eleição, que não não foi por medo nem por resignação que as pessoas foram às urnas. Desta vez, votaram com efectiva vontade de mudar, e de serem a principal força motora dessa mudança. É a eleição mais participada de sempre, a mais debatida de sempre, aquela que mais sentimento e emoções fez brotar. É a beleza da democracia e do Estado de direito. E é de realçar que lições deste tipo continuam, em pleno século XXI, a ser dadas à Europa e ao mundo pelo mesmo povo que há mais de 200 anos foi pioneiro na defesa dos direitos inalienáveis da pessoa humana.
No dia de ontem, a 4 de Novembro de 2008, foi escrita uma das mais belas páginas da História. E nós somos os sortudos que que a presenciámos.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Venezuela's Wrong Path.


The condemnable attitude taken by the Venezuelan government of expelling Human Rights Watch (HRW) observers is no more than a clear reflex of the rough and repressive political strategy followed by President Chávez. HRW is a respectable NGO, which work is largely recognized by the international community as extremely positive and useful to the vigilance and defense of human rights across the globe. HRW is one of the most trustful NGO’s, and its reports and suggestions are often considered by official international organizations and governments, when decisions concerning human rights affecting a specific country are to be taken.
Given this, it is hard making a blind eye to the anti-liberal policies Mr. Chávez has been promoting since he came into office a decade ago. Political harassment have imprisoned the basic structures of the Venezuelan civil society, especially after the 2002 failed «coup d’état». Ever since the coup, Mr. Chávez and his counterparts have been justifying their unclear governance and radical political choices with the necessity of keeping a strong state, taking advantage of the 2002 event to diminish and persecute his opponents.
The expulsion of the HRW delegation is only a tiny example of the government’s disrespect for the principles of individual freedom, separation of powers and the rule of law. Some of the measures taken by Mr. Chávez are an unequivocal signal of his real long term intentions, mainly to extend his personal influence both to the public and private spheres of the country. First of all, Mr. Chávez has put his efforts on the approval of a new leftist Constitution, paving the way for more presidential power. However, the supposed “supreme law” of the country has proven to be easily handled by the presidency, and nothing or no one – even the Supreme Court – are able to stop this grotesque juxtaposition of powers.
Oil-rich Venezuela has sought, under Mr. Chávez’s presidency, to undermine the climate of stability and mutual understanding of the international community. He is using his country’s natural resources as a political weapon, pretty much alike his Russian homologous. It is widely recognized that Mr. Chávez stands his inflammatory rhetoric on the current high prices of oil and on the dependence of his importers. However, as recently noted by The Economist, Venezuela and its closest strategic partners “overlooked (…) a plunge in oil prices, and hence their own revenues.” Moreover, his economical policy is all but transparent, in which the forced nationalization of banks is only the most visible side.
It wouldn’t be unwise to affirm that Venezuela may have chosen the wrong path in becoming a centralized and undemocratic state, because as the future will certainly prove, the rule of law cannot be replaced by high oil revenues or by the arrogance of Mr. Chávez, who speaks as if he hadn’t a gagged opposition inside borders. ONG’s like HRW may have a very important role in denunciating these practices; and, at the same time, they might be able to act as an external voice for Venezuelan and other countries' imprisoned oppositions. HRW and other watchdogs like these must stand firm against disrespectful governments, promoting democracy and good governance wherever possible.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O Lado Bom de Bush.


A propósito de W, que retrata o lado menos alienado do ainda Presidente norte-americano, surgiu um também muito oportuno artigo no último número edição portuguesa da Foreign Policy, que faz uma espécie de apanhado do que foram as principais conquistas e feitos da Administração Bush em matéria de política externa.
E não foi tudo mau. Pelo contrário, Bush incrementou as relações com a China e desenvolveu-as como nunca. Fez o mesmo com outras potências asiáticas como a Índia e o Japão, prosseguindo uma política de selective engagement própria da direita americana, que opta por ser menos abrangente nas alianças e afigura-se mais voltada para zonas estratégicas consideradas vitais para os interesses da América. Mesmo na relação com os aliados da NATO, é errado pensar-se que foi Bush quem contribuiu decisivamente para a deterioração das relações no seio dos membros da Aliança. Estas cisões advêm já da altura em que a NATO se viu envolvida em operações nos Balcãs, durante os anos 90.
Em termos de segurança interna, não é fora do contexto afirmar que os EUA estão mais seguros agora do que durante outras Administrações. E, não sendo seguro que o ódio aos Estados Unidos tenha aumentado em países potencialmente patrocinadores do terrorismo ou mesmo em países considerados aliados quando comparado com níveis anteriores, é crível dizer que a probabilidade de o seu território continental sofrer um atentado não é maior do que durante, por exemplo, a era Clinton. Até porque não foi durante os anos de Bush que foram planeados os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono a 11 de Setembro de 2001. Esta probabilidade exclui, obviamente, as forças militares estacionadas no estrangeiro.
Isto não faz varrer para debaixo do tapete os erros crassos de Bush, nem faz olvidar a penúria que foi o último mandato, quando esses mesmos erros eram já impossíveis de encobrir ou de justificar perante a comunidade de países livres. A intervenção no Iraque foi o caso mais flagrante de uma política fracassada no global, mas com pontos positivos pelo meio – basta pesquisar sem preconceitos e com olhos de ver.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

W.



Mais não seja, o novo filme de Oliver Stone vale pelo sentido de oportunidade. Podia até nem ser um grande filme, podia até ficar muito abaixo das expectativas, podia até ser arrasado pela crítica, mas este W. não pode ser acusado de ser inoportuno. E só por isso, a “humanização” de George W. Bush vale as duas horas.
Stone é maquiavélico. Não no sentido a que a palavra nos habituou, mas porque contra a vontade de muitos, não enxovalha Bush Jr., conferindo-lhe um retrato muito pouco político e muito mais biográfico. O que é perfeitamente compreensível: afinal, para quê calcar mais a figura de alguém que é calcado todos os dias? Bush Jr. será um homem livre daqui a um par de meses, e pouca gente percebeu quem é que realmente se esconde por detrás da máscara de Presidente dos EUA.
Bush Jr. é um tipo normal. Teve um pai importante, rico, influente, como alguns têm a sorte de ter. Foi um «rebel without a cause» durante os loucos anos da universidade. Gostava de beber uns copos, de dançar, de ser livre. É daquelas pessoas que toda a gente se imagina a rir alarvemente diante de várias cervejas.
Bush Jr. sofreu agruras em empregos por onde passou. Foi injustiçado em alguns aspectos da sua vida, especialmente no aspecto familiar, irremediavelmente tapado pelo irmão Jeb, preferido do pai. Teve de provar-se a ele mesmo que era capaz, e mais importante, de provar a outros que era capaz. E foi. Bush Jr. era mau em tudo por onde passou, mas não era mau na política – nela apostou tudo, contra a desconfiança do pai e da mãe, e ganhou. Ganhou algo aos 40 anos, depois de uma vida de completo fiasco é verdade – mas ganhou. Poucos acham que ele não teve de lutar por nada. Puro engano: não foi fácil descolar-se da imagem de “protegido”, e pior ainda de se distanciar da imagem do pai para conquistar algo por ser quem é, e não por ser filho de quem é. Bush Jr. é Bush Jr., não é Bush Sr.
E o homem tido por burro não é burro nenhum. É antes um bonacheirão, produto do meio rural americano, o qual cativou pela simplicidade, por meia dúzia de ideias-chave, e por uma perseverança e simplicidade de trato que a maioria dos americanos lhe reconheceu. Junte-se a isto o facto de Clinton ter caído em desgraça nos últimos tempos do mandato, e temos Presidente.
Bush Jr. foi capaz de sacudir obstáculos e acusações, e conseguiu ter sucesso sabendo pouco. Mas sabia pouco porque achou que não precisava de saber muito para chegar onde queria chegar.
Get ready to know the man.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Louca Paródia a McCain/Palin.

Bem ao estilo americano, depois de Os Simpsons parodiarem a candidatura de John McCain, é a vez do muito liberal Seth McFarlane, criador da série de culto Family Guy, meter a mãozinha na campanha eleitoral. E, muito mais radical do que a série de Matt Groening, não fez por menos. McFarlane faz a série recuar até à Alemanha nazi para colocar em Stewie - o personagem mais hilariante da série - um pin da dupla McCain/Palin, quando este veste um uniforme nazi.
Muito se pode discernir sobre o pretenso mau gosto de McFarlane. Estas coisas têm o seu espaço e têm uma influência praticamente nula na votação: quem vota democrata ri-se, quem vota republicano pode ficar chateado mas encolhe os ombros. Há até aquele punhado de pessoas que fica tão chateado que passa a votar McCain só pelo mau gosto da coisa. Claro que casos como este têm mais tendência a serem desculpadas aos meios liberais do que aos meios conservadores, mas que tem piada lá isso - diabos me levem - tem.
E uma coisa é certa: esta é apenas uma das muitas provas de que a América e a sua democracia estão vacinadas e sabem como lidar com o que vem do outro lado. A sociedade de lá sabe que o humor, mesmo aquele que faz ferver alguns, faz parte da festa.


Paul Thomas Anderson: O Próximo Coppola?

Magnolia (1999) é o filme do sofrimento. São mais de três horas em que os olhos não despegam do ecrã, arregalados com tamanha sumptuosidade. O filme está impregnado com cenas de rara beleza, daquelas que tocam até o mais rabugento dos corações. Magnolia é um objecto cinematográfico que faz a alma desesperar-se aos poucos, perante histórias aparentemente banais, mas lá no fundo densamente complexas. A mestria é de Paul Thomas Anderson, uma das mentes mais geniais de Hollywood. Impressionante é deslindar como Anderson permeia e interliga os anseios, as frustrações e os devaneios de não poucas personagens, captando a quente as suas emoções e transpondo-as para o olhar do espectador na sua dimensão mais impiedosa e mais cruel.
A câmara de Thomas Anderson é crucial neste emaranhado de situações psicologicamente dramáticas. A precisão dos seus movimentos aliada à maneira como foca, por exemplo, o rosto dos personagens numa sincronia perfeita com o meio envolvente é, pode dizer-se, um dos mais significativos traços do cineasta californiano. E talvez a melhor cena para o demonstrar seja esta onde as personagens são focadas no seu espaço físico e psicológico mais íntimo, sem constrangimentos nem superficialidades - onde o papel da música (Wise Up de Aimee Mann) é particarmente importante. É um momento de rara beleza que perdurará certamente na memória de qualquer um. Esta cena tem de vir nos manuais de cinema.
Refira-se também, em Magnolia, a introdução da temática das probabilidades e do acaso e na forma como esta entra de rompante na vida de cada um, perante as suas mesclas de pequenez e impotência. E a forma como capta a solidão inata e irremediável de cada um deles é simplesmente única. Pois no final é disso mesmo que se trata: mesmo nas sociedades mais ricas e evoluídas, todos sofremos sozinhos, à nossa maneira sim. Mas sozinhos.


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

E Se Fosse Huckabee? (Obrigatório Ver o Vídeo).

Ora bom, muita gente não gosta de John McCain. Muito bem, estão no seu direito, os republicanos tiveram ao longo dos últimos anos a pior liderança da história, com o homem que foi também o pior Presidente de que há memória. Mas McCain é um autêntico menino do coro comparado com o ex-candidato à nomeação republicana, Mike Huckabee. O antigo governador do Arkansas é fã de...Chuck Norris e, para ele, o actor é a solução para os problemas de segurança dos EUA e fundamental para a protecção do direito à posse de armas, contemplado pela famosa e controversa 2ª emenda da Constituição. O vídeo aqui exposto é de visionamento obrigatório, para que com uma boa gargalhada (ou várias), nos apercebamos daquilo que de pior a América é capaz de produzir politicamente. Com Huckabee, em vez de dois países invadidos em oito anos, teríamos uma média de dois por mês...
I'm Chuck Norris and I approve this message. Bendito McCain.


quinta-feira, 16 de outubro de 2008

McCain vs. Obama - Round 3.

E, por fim, o último. Já não há mais debates até 4 de Novembro próximo, dia em que pouco menos de 290 milhões de norte-americanos serão chamados às urnas para, entre muitas outras coisas, escolherem o seu dirigente máximo até 2012. Para o terceiro apronto entre os dois candidatos, Barack Obama continuava bem à frente nas sondagens em relação a John McCain. Se bem que com números divergentes, é possível afirmar com relativa certeza que Obama estava – e continua a estar – numa posição privilegiada na corrida à Sala Oval. Contudo, não é de menosprezar o facto de que McCain dispõe ainda de um número suficiente de indecisos para dar a volta à eleição, cerca de 8% segundo a última sondagem CNN. E mesmo não sendo crível que todos os indecisos acabem convencidos pelas ideias do senador republicado, não é menos verdade que algumas sondagens podem estar a pecar por excesso em relação à alegada vantagem de Obama: o New York Times atribui 14% de vantagem ao democrata, ao passo que a Gallup atribui apenas 3%. Números confusos e dispersos que não permitem conclusões sólidas. De qualquer modo, e jogando à defesa nas afirmações, Obama lidera, e à partida para o derradeiro frente-a-frente, tinha mais do que condições para manter ou até aumentar a vantagem face a John McCain. É importante ainda veicular que Obama parece, até agora, ter de alguma forma superado com sucesso a questão racial, em especial a natural antipatia que muitos hispânicos e alguns sectores brancos nutrem pelos negros nos EUA. Obama não é visto como um negro típico, muito menos como um segundo Jesse Jackson ou um Martin Luther King Jr. E isto tem sido fulcral para Obama ter chegado onde chegou.
Já o republicano não conseguiu nunca, em nenhum momento da campanha, afastar-se o suficiente de George W. Bush. Havia feito até aqui uma campanha sem novidades de maior, cujo maior golpe mediático (chocante para alguns até) foi a escolha de Sarah Palin para vice. Escolha que não correu da melhor maneira a McCain, que após um período inicial de aprovação, cedo viu a sua “running-mate” revelar a sua verdadeira face, a qual, como é amplamente sabido, não agradou a quase ninguém. Ainda para mais tendo em conta que é no mínimo plausível pensar que as hipóteses de chegada à presidência do nº 2 de McCain, fosse ele (ela) qual fosse, são consideráveis. Portanto, tornava-se imperativo para o senador do Arizona puxar dos galões neste último debate e passar a ataque.
E foi isso mesmo que aconteceu. No palco da Universidade de Hofstra, em Hempstead, Nova Iorque, McCain começou e acabou o debate com uma chuva de críticas ao democrata, naquele que foi sem dúvida o mais intenso e vivido dos três debates a que tivemos oportunidade de assistir. Houve fases em que esteve melhor do que Obama, mais convincente, sabendo ser forte nas críticas sem ser paternalista, e sabendo ser duro sem ser ofensivo – dois erros crassos que McCain poderia ter cometido mas que não cometeu. Entrou de rompante, procurando colar a imagem de Obama ao aumento de impostos, ao passo que apregoava enfaticamente uma política económica centrada em descidas fiscais. Prometeu poupança acima de tudo, e fez tudo para se distanciar de Bush, estando particularmente bem quando interceptou Obama dizendo: “I am not President Bush. If you wanted to run against him you should have done it four years ago.”
Na área económica, Obama esteve ao seu estilo habitual. Sem arriscar – assim ditavam as sondagens – limitou-se a responder aos ataques de McCain, o mais calmamente possível, consolidando no eleitorado a sua a imagem de solidez e confiança. E creio que o conseguiu. Insistiu no redefinir de prioridades, defendendo a eliminação dos programas estatais que não funcionam em favor dos que funcionam e prometendo reduzir a carga fiscal a 95% das famílias. Nada de muito novo, portanto. No tema da campanha, o democrata tremeu um pouco face às investidas do republicano, que o acusou sucessivamente de interesses em certos sectores e de uma campanha obscura. Mas no final acabou por sair-se bem, ao colocar preto no branco as pessoas que o acompanharão à Casa Branca em caso de eleição.
Na pergunta sobre os respectivos “vices” (aqui em vídeo), Obama levou inequivocamente a melhor. McCain não soube atenuar a imagem de Palin, e não fez sobressair suficientemente bem as suas virtudes; ao passo que Obama elogiou Joe Biden eficazmente, tocando nos pontos essenciais da sua personalidade, ou seja, na sua especialidade, que é a política externa.



O debate prosseguiu com a discussão sobre energia e alterações climáticas, altura em que é difícil dizer quem esteve melhor. McCain saiu-se bem, provando não ter esquecido o tema, sendo peremptório na aposta no nuclear. Já Obama optou por um discurso cuidado mas revelador, focalizando-o na importância da energia limpa, a qual afirmou ser o motor da economia americana para o próximo século. E disse acreditar ser possível reduzir a factura petrolífera em dez/quinze anos anos - uma previsão mais realista do que a do republicano. Este é um dos pontos que jogam bastante a favor do democrata, e que o distingue bem de McCain. De resto, soube, na noite de ontem, defender-se a grande nível dos ataques do adversário, aos quais respondeu separadamente e com enorme à vontade – especialmente neste tema. McCain, por seu lado, já pouco tinha por onde pegar, voltando a dirigir-se em tom pessoal a uma pessoa em concreto durante o tema da saúde. Mas mais uma vez, Obama teve uma resposta à altura do republicano, ao declarar que os cuidados de saúde nos EUA devem começar por ser, antes de mais, preventivos.
O debate chegou ao fim com mais investidas de McCain, as quais em parte deram resultado. Obama teve um período menos bom, durante o qual não teve arte nem engenho suficientes para não deixar McCain ficar por cima. De qualquer forma, o candidato democrata equilibrou a contenda na parte intermediária, para não mais a deixar escapar. Resumindo, McCain esteve melhor do que no primeiro debate e muito melhor do que no segundo, mas Obama primou pela regularidade e rectidão no discurso, algo imensamente apreciado por todo o eleitorado. Por isso, e no conjunto dos debates, Obama levou a melhor por 2-1 – ainda por cima nos dois últimos, os que mais ficam gravados na memória.
Barack Obama, actual senador pelo estado do Illianois, 47 anos, é a minha aposta para próximo presidente dos Estados Unidos da América, numa eleição onde não só se decide o futuro do país, mas o futuro modelo sobre o qual assentará todo o sistema de relações internacionais para os próximos quatro (oito?) anos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

"Prova d'Orchestra" de Federico Fellini.


Fellini é um realizador surpreendente. Aparte o seu incontestável génio, do qual já é perda de tempo discernir longamente, o mestre italiano não quis legar a sua obra sem uma referência directa ao tema da música. Muito diferentemente dos seus outros filmes, Fellini opta em Prova d’Orchestra (1978) por uma abordagem mais descomprimida – note-se por exemplo que apenas o maestro é actor profissional, sendo que os restantes são meros actores de ocasião. No entanto, nada disto retira génio ao filme, pelo contrário, apenas o realça.
Fellini traça magistralmente o retrato da relação amor-ódio (mais ódio do que amor) de uma banda para com o seu maestro. A acção ocorre num reduzido espaço, não superior a uma capela transformada em auditório, devido a uma alegada excelente acústica. O espaço revela-se um elemento primordial, porquanto permite articular finamente com a câmara a interacção estreita existente entre os risíveis personagens, fazendo sobre eles abater o seu insondável espectro. Mesmo em tão pouco tempo de filme, parece haver uma definição quase perfeita do carácter irrepetível de cada um dos elementos que compõem a banda, os mesmos que a lançam numa anárquica e contestatária avalanche de emoções e gestos irracionais. A emotividade acelerada da banda lança dúvidas sobre a exequibilidade da empreitada musical, e ainda mais da hierarquia e do respeito pelos quais por convenção se pautam este tipo de colectivos. A lição de Fellini surge então sob a forma de acalmia, depois da inesperada derrocada de uma das paredes da igreja, durante a qual a harpista sai ferida. Todos se apercebem da necessidade da ordem e da harmonia, que apenas podem ser trazidas pela direcção de um maestro competente e sério. O final é soberbo, com toda a orquestra a tocar sublimemente dentro de um conspurcado cenário de uma igreja parcialmente destruída. O binómio ordem/desordem numa melódica realização de Fellini.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Estendam a Passadeira e Protejam-se.



Cuidadinho. Mas muito cuidadinho mesmo. Eles não morreram. Eles andam aí e vêm dispostos a pôr a modéstia de lado. Os manos mais perigosos da Velha Albion voltaram às arrasadoras lides “rockeiras”, culminando um período no qual muita tinta correu sobre o seu anunciado e aguardado regresso. Como estará o som dos Oasis? Estará pouco reconhecível? Os Oasis deixaram de ser…Oasis? Voltarão aos tempos de Rock n’Roll Star? Não, nada disso.
Noel e Liam estão simplesmente a marimbar-se para rótulos. A música que lhes sai daqueles instrumentos é a que eles quiserem que saia, sem artifícios nem «corantes». À boa maneira Gallagher, quem quiser que ouça, quem não quiser não ouça. Quem achar que eles estão a fugir aos pergaminhos que vá dar uma volta ao bilhar grande, para não dizer pior.
Dig Out Your Soul sucede a um muito «morninho» Don’t Believe The Truth, e tendo em conta o que iam dizendo os manos, o que estaria para vir seria diferente. Diziam que não haveria hits, que não se admirariam se nenhuma das novas canções passasse na rádio. E de facto assim é (com a excepção da fabulosa The Shock of the Lightning). Mas não se apoquentem os mais cépticos. Dig Out Your Soul é um disco robusto, construído sobre sólidos alicerces. As quatro primeiras faixas são de fazer tremer as más-línguas, e colocarão um sorriso na cara aos mais desprevenidos. O álbum abre com Bag It Up, uma sumptuosa batida rock e segue com Turning, na minha opinião das melhores do disco. Elegante, belissimamente escrita ao melhor estilo dos Gallagher. Em Wainting for the Rapture já estamos a esfregar as mãos à espera de The Shock of the Lightning, mas apuramos e ouvido e deparamo-nos com uma enérgica guitarrada cheia de saborosas oscilações. Quanto ao “single”, é do melhor. Mais um hino que parece saído dos anos 90. Oasis clássico. Acreditem: só esta faz encher a barriga.
Depois do fartote, Dig Out… acalma. Só em Ain’t Got Nothin volta a haver barulho. Até lá, I’m Outta Time, (Get Off Your) Horse Lady e Falling Down são agradáveis «intrusos» cheios de pintarola. A primeira é um calmante para a alma que pede um fechar de olhos; a segunda pede um bater de pé para acompanhar o abrasivo ritmo imposto pela batida – tal como, diga-se, To Be Where There’s Life; já a terceira sobe de tom e é dominada por um som retorcido e misterioso – mais um exemplar de uma das veias criativas dos manos.
Para fechar em beleza, The Nature of Reality é uma marcha triunfal a rasgar tudo. Mais um dos momentos altos do álbum. Para fechar, um momento mais “cool”, talvez uma das facetas mais bem conseguias de Dig Out Your Soul. Soldier On é daquelas com que nos identificamos imediatamente e das que dá vontade de cantarolar baixinho.
E pronto. Eis Dig Out Your Soul, o melhor registo dos Oasis desde Morning Glory. Sentem-se melhorias em relação a Heathen Chemistry e a Don’t Believe the Truth. Neste está lá tudo. Tudo o que os Oasis podem fazer. Não estão descaracterizados, estão apenas uma década mais velhos. Mas desta vez deram um murro na mesa. Sejam bem regressados!
E agora com vossa licença, mas há uma certa The Shock of the Lightning para ouvir.



Oasis aqui na capa da Uncut de Stembro, o que atesta bem a atanção que imprensa da especialidade dedicou ao seu regresso. Menos não seria de esperar. Respeitinho é muito bonito.

O Regresso dos Príncipes do Rock.


A crítica segue dentro de momentos...

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

EndEUSada Canção.

Esta música é obrigatória. A banda de Tom Barman atinge um patamar quase divino com esta melodia e faz bom jus ao nome dEUS. Os belgas excederam-se nesta belíssima composição musical, uma belíssima amostra da melhor face do rock alternativo/indie chamem-lhe o que quiserem. O refrão é qualquer coisa de mágico, ao nível dos melhores. Redescobrir Sister Dew, do álbum The Ideal Crash vale bem a pena. E não, a música não tem meio ano, tem quase uma década. Garante-se qualidade a quem se der ao trabalho de abrir o vídeo abaixo:


Partido Socialista No Seu Melhor.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma questão menor. Não é uma questão prioritária, muito menos fulcral para o regular funcionamento da sociedade portuguesa ou de qualquer outra. Deve ser discutida sim, mas tendo em conta que há muitas outras coisas bem mais importantes e bem mais urgentes.
Mas já que a discussão passou para o nosso querido plenário, não posso deixar de notar um ou outro aspecto muito típico do muito nosso seguidismo partidário - os quais parecem, não sei porquê, colarem-se irremediavelmente à imagem do nosso também querido Partido Socialista. O mui volátil PS mostra nesta votação quem verdadeiramente é. Ou não é. Ou diz que é mas afinal só é em parte. Ou afinal parece que alguns são e outros são mais ou menos e afinal só uma pequena parte é que não é. Ou afinal de contas são todos e não querem dizê-lo com excepção de um ou outro. Ou então não é nada disto e são realmente todos a favor só que não querem votar agora mas talvez votem depois. Ou...ou...ou...
Calma.
Já nem sei o que estou a dizer. Respiro fundo e concluo perplexo que é o Partido Socialista que me põe assim. Para o Partido Socialista, deve ser absolutamente normal contrariar a própria consciência e votar contra algo que se defende. Sim porque era o que mais faltava os inchados e empoleirados falcões do PS votarem uma questão fracturante em período pré-pré eleitoral sob risco de perder uns quantos votozinhos! Nem pensar. Antes contrariar os próprios valores do partido e dos ideiais de esquerda que tanto apregoam. Pior: antes desdizerem-se perante a câmara que representa o povo português. Gosto muito deste país, mas pena tenho que este povinho continue insistentemente a votar no partido da rosa (ou do risível punho fechado). Infelizmente, vezes demais penso que temos o que merecemos.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

McCain vs. Obama - Round 2.



E à segunda foi de vez. Barack Obama foi um claríssimo vencedor do debate que na madrugada de hoje opôs os candidatos democrata e republicano à chefia do (por enquanto) estado mais poderoso do mundo. O senador do Illianois partia para Nashville com uma pequena vantagem nas sondagens, vantagem todavia magra e possivelmente até enganadora, dado que muitos dos que responderam que preferiam Obama não confirmaram que votariam de facto. Já McCain via-se obrigado a correr atrás do prejuízo, mesmo após a boa performance tida no primeiro embate. Este segundo debate afigurava-se, portanto, fulcral para as aspirações do republicano. Nenhum dos dois se podia dar ao luxo de cometer qualquer gafe, nefastas numa altura em que campanha entra na sua fase decisiva.
O formato deste debate não favoreceu McCain. Ambos os candidatos passaram a maior parte do tempo de pé a responder a perguntas da plateia, e a perguntas colocadas pelo moderador, dentre as cerca de seis milhões que haviam sido enviadas via Internet. McCain fez contrastar o peso da sua idade com a jovialidade do seu adversário, pelo modo como andava com dificuldade no círculo preparado para o efeito. Por outro lado, McCain esteve quase sempre na sombra de Obama na questão económica (onde nenhum dos dois é especialista), e mais ainda na discussão sobre política externa. Num debate em que ambos procuraram reforçar as ideias transmitidas no primeiro debate, Obama soube contornar os ataques de McCain, os quais muitas vezes saíram de tom. Obama conseguiu também sacudir um argumento que McCain usou com frequência, relacionado com o facto de ter mais currículo do que ele. Disse várias vezes McCain: “Look at my record and look at his”.
Na questão económica, questão central no debate em virtude do recente abalo nos mercados financeiros internacionais, a confrontação verbal surgiu um pouco oca de conteúdos, mas teve algumas tiradas interessantes: McCain acusou Obama de ter responsabilidades na falência do Fannie Mae por via da sua acção no Congresso, ao passo que Obama acusou McCain de ir contra vários projectos lei que visavam o investimento em energias limpas, factor que o democrata considera essencial para uma recuperação económica dos EUA. Por outro lado, Obama insistiu e bem na importância de apurar responsabilidades ao mais alto nível por tudo o que tem acontecido nos mercados. McCain reforçava a ideia de credibilidade e de solidez que o próximo Presidente devia ter para enfrentar uma crise sem precedentes. Em suma, discursos vazios, mas dos quais se conclui que Obama esteve acima do seu rival, tanto pela fluidez do discurso como pela maneira como soube colar McCain a uma imagem de imobilismo e de passado. E esteve particularmente bem ao insistir regularmente que todos devem partilhar o fardo (”share the burden”), e não apenas alguns – algo que McCain não fez.
Em termos de prioridades, Obama soube também ser mais assertivo e convincente do que o republicano. Colocou, por esta ordem – e sem contornar a pergunta como fez McCain – a energia, o sistema de saúde e a educação como prioridades para o seu mandato. Defendeu a produção de energias limpas em solo americano, para evitar a sua compra ao estrangeiro; e prometeu fazer girar toda a economia à volta das novas energias limpas. Defendeu a redução de impostos para 95% dos americanos, e um favorável sistema de crédito para que as PME’s possam adquirir seguros de saúde para todos os seus funcionários. McCain foi forçado a ir atrás de Obama neste assunto e não esteve nunca à altura das propostas do democrata. Obama desacreditou McCain na questão dos seguros de saúde, argumentando que a procura de seguros de saúde fora do estado de residência promoveria a desregulação total do sector.
No concernente à política externa e de segurança, não houve grandes avanços nem grandes novidades; apenas o reforço daquilo que ambos haviam defendido no Mississípi. Para McCain a prioridade é o Iraque, para Obama é o Afeganistão. Mas o democrata esteve em grande quando afirmou claramente que os 10 biliões de dólares que os EUA gastam todos os meses no Iraque é dinheiro que o país precisa dentro de portas para pôr as pessoas a trabalhar. E foi capaz também de virar a acusação de McCain sobre o facto de ser mais experiente e mais talhado para a política externa, perguntando como é que alguém tão capaz falhou rotundamente ao apoiar a invasão do Iraque. De resto, não houve grandes novidades, dado que nenhum dos dois tem diferenças de fundo quanto a questões como a Rússia, Irão, ou quanto a intervir em casos de genocídio – em que ambos dão preferência à opção multilateral).
No final, vitória consensual para Obama, muito melhor do que no primeiro debate – contra um McCain que não fez jus à fama de dureza pela qual é conhecido, sendo excessivamente moderado, que foi algo que o descaracterizou aos olhos de quem o conhece e que estava à espera de ver o «verdadeiro» McCain. Será que senador do Arizona vai a tempo de emendar a mão? Não será nada fácil, tendo em conta que este debate consolidou Obama bem à sua frente. Seria preciso uma grande (ou várias) escorregadelas do seu rival para aumentar as suas hipóteses de eleição a um nível mais aceitável. Mas não é menos verdade que por esta altura, e depois de uma desastrosa governação republicana, qualquer candidato democrata já devia levar muita mais vantagem face a qualquer republicano, algo que não acontece. E este é dos poucos pontos que McCain pode ainda explorar. Seja como for, Barack Obama está mais perto da Casa Branca. Dia 15 há mais, em Nova Iorque.

sábado, 4 de outubro de 2008

Uma Grandiosa Notícia.


A Premiere voltou. Mal conseguia acreditar quando soube do regresso da única publicação dedicada exclusivamente ao cinema que este país já teve. Na capa vem Brad Pitt, uma escolha simbólica que faz recordar o "primeiro" nº1. Os meus sinceros parabéns à persistência do José Vieira Mendes, novamente editor-chefe da revista, e à jovem editora que teve a coragem de ressuscitar este valioso projecto. É como ver um morto regressar à vida e ser apanhado pelo choque. Foi um interregno de um ano desde a "descontinuação" da revista em Outubro do ano passado, uma triste decisão por parte da editora francesa Hachette. Uma decisão motivada por irritantes lógicas de mercado, mas provavelmente com uma boa dose de casmurrice à mistura.
Na altura, não consegui disfarçar a minha desilusão, certamente compartilhada por muitos e muitos amantes de cinema por este país fora. Desde aí o mercado de imprensa nacional ficou visivelmente desmembrado de uma publicação que como tantas outras se dedicam a nichos, mas cuja importância não deve ser descurada, em nome de uma salutar divulgação de conteúdos culturais diversificados. É bom que revistas como a Premiere saiam todos os meses para as bancas, já que constituem um contributo essencial para um melhor acesso às mais variadas formas de arte, permitindo consolidar um público já fiel e juntar-lhe ainda gente nova com curiosidade e vontade de saber mais sobre manifestações artísticas tão enriquecedoras como a sétima arte. Para ver se este país fica um pouco menos pimba e saloio.

Valkyrie.



Valkyrie é um filme a aguardar com expectativa. Tom Cruise na pele do Coronel Claus von Stauffenberg, um oficial alemão de alta patente que tentou assassinar Hitler a 20 de Julho de 1944. O golpe tinha tudo para dar certo: por via do cargo que ocupava no exército de reserva, Stauffenberg tinha acesso à presença do Führer e os oficiais, estranhamente, não eram revistados. Stauffenberg sentia-se movido pelo amor à pátria. Mesmo que por um caminho moralmente errado, a Alemanha devia livrar-se do seu maníaco Chanceler e chefe supremo, o qual inevitavelmente levaria Alemanha ao abismo e, estava mais do que provado, à derrota final.
Por várias vezes Hitler havia sido alvo de tentativas de assassinato, mas nunca nenhuma delas ficou tão perto de se consumar. O acto co-planeado e pessoalmente executado por Stauffenberg consubstanciava as inquietações e a racionalidade de uma larga franja das elites política e militar da Alemanha, que via um monstro guiar uma nação e um povo inteiros para um desastre sem precedentes. O acto deste coronel foi um acto heróico, vindo de alguém com uma educação católica romana, com gosto pelas artes, pela filosofia, e de raízes aristocráticas. Stauffenberg, à semelhança de muitos outros silenciosos oficiais alemães, sentira-se atraído pelo nazismo numa primeira fase, mas não pactuava com as incontáveis atrocidades cometidas em nome da superioridade da raça ariana, nem com as decisões militares estrategicamente erradas que vinham sendo tomadas nas várias frentes de batalha. A ideia era pois fazer a paz separada com os Aliados, evitando males maiores e muitas mortes em vão para um país já desgastado para além do limite.
Por má colocação da mala ou pela via da resistência da mesa, o que é certo é que o golpe falhou. Mas o mito de Stauffenberg permanece vivo, bem como o fascinante significado do episódio da História que proporcionou. A não resignação aos poderes instalados e o dever de colocar os interesses do país e do povo acima dos interesses particulares, especialmente quando os destinos destes estão incondicionalmente entregues nas mãos de um louco. O episódio de 20 de Julho de 1944 faz repensar o movimento nazi e alimentar alguma especulação sobre os moldes em que penetrou nas mentes dos alemães, e a verdadeira extensão da sua aceitação dentro dos meios mais letrados da sociedade alemã, porventura não tão profunda como já se supôs. Repleto de “suspense” e drama, Valkyrie tem estreia prevista para 26 de Dezembro.


Aqui fica a muito interessente capa da Total Film de Outubro, que faz precisamente jus à figura de Tom Cruise em Valkyrie.

domingo, 28 de setembro de 2008

McCain vs. Obama - Round 1.


Os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos protagonizaram ontem no estado do Mississípi o primeiro de três debates, através dos quais se propõem convencer o eleitorado de que são o melhor homem para liderar os destinos da superpotência nos próximos quatro anos. Considerados dos momentos mais cruciais da campanha presidencial, os debates a dois são televisionados por milhões não só na América, mas por todo o mundo. É um acontecimento político de alcance global, visto, revisto e analisado ao pormenor por especialistas e politólogos dos quatro cantos do globo.
No frente-a-frente de ontem, os dois candidatos assumiram posturas distintas. Cada um por si procurou distanciar-se do estilo do outro, fazendo por fazer salientar o melhor possível as suas idiossincrasias e os seus trejeitos pessoais. McCain optou nitidamente por apelar à razão e ao coração do americano comum, do homem simples do meio rural e do tecido urbano médio, dando especial ênfase à sua vasta experiência política e militar. Obama decidiu-se por uma comunicação mais eloquente, mais enérgica que McCain, fazendo por trazer ao de cima questões que são caras ao partido Democrata, como o sistema de saúde e a energia. Em termos de estratégia comunicativa, creio que McCain levou a melhor. Soube espicaçar Obama quando necessário, soube manter a regularidade no tom de voz e apostou numa postura sólida e quase imóvel frente às câmaras, numa clara intenção de transmitir uma imagem de dureza e de sabedoria. E nunca olhou directamente para Obama nem quando falava nem quando escutava, como que tentando diminuir ao máximo as mensagens do seu oponente. Ao contrário de Obama, que fez contrastar com McCain um discurso menos fluído, mais intermitente; ao mesmo tempo que cometeu, quanto a mim, o crasso erro de dizer com mais regularidade do que o desejável “you are (absolutely) right John, but…” no início de várias frases. Obama não precisava de admitir, mesmo que por um breve instante, que McCain estava certo. Poderia simplesmente refutá-lo, como fez aliás o seu adversário. Obama conseguiu, ainda assim, recuperar alguma da fluidez no discurso à medida que o debate avançava, melhorando em relação ao que mostrou na parte inicial.
No capítulo das ideias, o debate dos candidatos à Casa Branca girou em torno de três grandes temas: impostos, política externa e segurança interna – estas duas de resto bastante interligadas. Ambos os candidatos centraram-se mais em desdizer o outro do que em apresentar propostas concretas, havendo ainda assim lugar a algumas questões fracturantes no que toca a assuntos muito concretos e que requerem solução urgente, sendo o caso mais paradigmático o Iraque.
Começando pela economia, ambos realçaram a necessidade de controlar com mais rigor a despesa pública e ambos prometeram ser inflexíveis nesse aspecto – isto sob uma chuva de acusações mútuas sobre quem no passado mais projectos gastadores aprovou. Até aqui nada de mais. A grande diferença surgiu quando Obama acusa McCain de querer cortar nos impostos às maiores empresas, ao passo que anuncia a intenção de cortar nos impostos de 95% das famílias. McCain, por seu lado, prefere cortar nos impostos das empresas para que haja a possibilidade de atrair mais investimento e, logo, criar mais emprego. Defende a necessidade de investimento em defesa para bem da segurança interna.
No que à dependência energética diz respeito, e ao contrário de Obama, McCain é peremptório ao defender a construção de novas centrais nucleares. Obama discorda lembrando que o mercado não resolve tudo por si mesmo, requerendo amiúde intervenção estatal. Estabelecendo prioridades, faz seguidamente a apologia das energias renováveis, da educação e da necessidade de mais obras públicas – assuntos, diga-se, apenas por ele referenciados.
Em matéria de política externa, McCain procurou estrategicamente assinalar a inexperiência de Obama e desacreditar as ideias deste. Obama, nesta fase já mais confiante e recomposto das hesitações iniciais, tentou colar a imagem de McCain à de Bush, dizendo-o mais do mesmo. Iraque, Afeganistão, Irão e Rússia dominaram as atenções em termos de política externa, sendo que nos dois primeiros McCain e Obama têm pontos de vista diferentes. Enquanto que o republicano defende a manutenção das duas frentes de batalha, o democrata defende – por motivos orçamentais e estratégicos – a retirada gradual e concertada das tropas do Iraque em 16 meses, e o reforço do contingente militar no Afeganistão, país que considera a principal ameaça aos Estados Unidos, fruto da forte presença da Al-Qaeda. McCain refuta esta ideia, argumentando que o Iraque é o principal desafio a enfrentar e que uma vitória final é possível. Diz o republicano que sem presença no Iraque, a actividade terrorista no Afeganistão aumentaria para níveis incontroláveis, sendo que tal significaria nada menos que a derrocada do esforço de guerra americano dispendido até aí. Faz referência aos soldados e às suas experiências pessoais nesses territórios, algo que, segundo ele, Obama nunca fez.



Quando inquiridos sobre a maneira de lidar com as intenções nucleares do Irão, McCain passa ao ataque afirmando que Obama era capaz de se sentar à mesa com gente como Ahmadinejad sem pré-condições, e tais práticas são ingénuas e perigosas. Recorre para tal a um perceptível humor irónico. Obama não aceita a acusação e refere que é preciso falar com todos, se tal significar mais segurança para os Estados Unidos, insistindo na diferença entre pré-condições e cooperação.
No caso da Rússia, a posição dos candidatos foi mais aproximada, defendendo ambos uma abordagem dura para com acções agressivas deste país, e colocando-se ao lado de países como a Geórgia e a Ucrânia, abrindo-lhes caminho para a inclusão na NATO. McCain esteve especialmente bem ao dizer que via a Rússia como um governo de ex-KGB’s.
Nas alegações finais, Obama dá mostras de pretender restaurar a confiança, entretanto perdida, do resto do mundo na América e nos seus valores, e de apostar em abordagens multilaterais como formas privilegiadas de resolver os problemas. Já McCain é mais pessoal e intimista, dirigindo-se uma vez mais ao homem comum e aos seus anseios e necessidades, tentando soar mais protector e paternalista que Obama.
No rescaldo deste confronto, creio que McCain conseguiu ganhar algo mais que Obama. Mesmo num debate pobre e pouco aguerrido, McCain soube gerir melhor o seu discurso e penso que o tom usado tenha soado bem aos ouvidos de muitos americanos indecisos. Obama triunfa sempre que chama Bush ao barulho, e tem de potenciar mais as ideias que verdadeiramente o distinguem de McCain: a saúde, as energias renováveis e a política social. Os próximos debates, em Nashville e Nova Iorque, terão forçosamente de ser mais assertivos quanto a alguns aspectos ainda pouco esclarecedores no programa de ambos os candidatos.
Por agora, as atenções viram-se para o debate de «vices», entre Joe Biden e Sarah Palin, no próximo dia 2 de Outubro.