segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Ser do Mundo.


Esta pode muito bem ser a viagem de uma vida. Para qualquer um que sonhe poder viajar livre e despreocupadamente à volta do mundo, o desafio é cruzar sob linhas férreas vários milhares de quilómetros, desfeiteando planícies, vales, cordilheiras e montanhas, penetrando fervorosamente no interior desértico das estepes asiáticas. Uma imensidão que a mente não alcança atravessa a rota iniciada na capital russa, culminando no outro lado da Manchúria, em Pequim – uma opção qualitativamente superior a Vladivostok. A viajem, desaconselhável aos menos tenazes, é não só uma verdadeira epopeia geográfica, mas sobretudo uma epopeia de inspecção e de introspecção. Tal empreendimento possibilita o contacto de perto com gentes que não são do nosso mundo. É estar no meio do lado temerário da Terra, aquele lado que desconhecemos e que portanto receamos.
Não conta para aqui a leitura de floreadas crónicas de viagem nem de volumes de enciclopédias: pôr o pé para lá dos Urais é uma aventura única e fascinante, que sacia temporariamente a sede de adrenalina de uma mente aberta ao conhecimento e às coisas novas. E, se viajar é aprender, percorrer 9000km sob carris e suportar uma dezena de fusos horários diferentes é uma verdadeira lavagem de espírito. É fazer reset em muitas convicções que tínhamos como certas e inabaláveis. É crível que observar tamanha pluralidade de tradições, gentes, paisagens e modos de vida em tão pouco tempo possa conduzir a uma mutação profunda no interior de todo aquele que aceita a relatividade da nossa cultura, da nossa arte, das nossas convenções.
O Transmongoliano – uma extensão do famoso Transiberiano – é indubitavelmente a melhor forma de assistir à sucedânea gradual da heterogeneidade cultural, paisagística e biológica do continente eurasiático. Trata-se naturalmente de uma jornada impagável, um gesto de auto gratificação sob a forma de um comboio, que molda forçosamente a perspectiva que até detínhamos da realidade, tão para lá do nosso insignificante quotidiano quanto os quilómetros calcorreados por esta histórica rota. Assistir em lugar de tribuna aos mais simples e pitorescos gestos de alguém; algum habitante longínquo de mundos paralelos ao nosso, gente apenas pensada, nunca reflectida. Esta é a oportunidade única de procurar sentirmo-nos pertença deste planeta chamado Terra, doce lar de tantas terras mutuamente desconhecidas. Tentar reduzir o fosso da irascível ignorância intercultural, para bem nós mesmos e dos outros, porquanto tudo é válido e digno de nota. Para viver sabendo-nos mais homens do mundo, a fim de evitar que o tempo passado neste apeadeiro que é a vida, não tenha tantos obstáculos nem seja tão cruel e triste.

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